domingo, 20 de novembro de 2016

CHAFARIZ DAS MUSAS
Notas de uma visita ao Rio

Quem fixa o olhar acima do espelho d'água
percebe de imediato o contraste entre a solidez da construção,
composta de uma base de pedras sobre a qual se eleva
um monumento em ferro fundido ao estilo vitoriano,
e a fluidez dos jatos que escorrem quase sem ruído
por entre a música, a poesia, a ciência e a arte,
materializadas nas quatro estátuas postas nas laterais,
como se o paisagista tivesse pretendido mostrar que as criações
do espírito tanto precisam da técnica quanto da leveza.
Não é menor o contraste entre a negritude do conjunto
construído e o verde das palmeiras do entorno,
dos aguapés que dentro do tanque vão se formando
e da pequena cerca viva que o circunda,
no que se torna um encontro da contenção inglesa,
responsável pelo projeto, com a exuberância brasileira.
Turva embora, a água do pequeno e raso reservatório
deixa entrever uma camada fina de areia e terra
na qual repousam alguns brincos, prendedores de cabelo,
e tampas de caneta, além de chupetas e palitos de picolé,
quase tudo parcialmente amarelado ou apodrecido.
Por força, talvez, do entusiasmo de alguns visitantes
que passaram antes pela Fontana di Trevi ou por locais similares,
a placidez do fundo sem peixes também recolhe ocasionalmente
reais brasileiros, dólares norte-americanos e marcos alemães,
entre outras moedas que foram, quem sabe, lançadas à água
junto com o que desejaram ou sonharam então seu proprietários.
Lá o modesto pecúlio descansa da obrigação capitalista
de circular até que o serviço municipal de limpeza
o recolha, já devidamente lavado dos sonhos e desejos,
que permanecerão submersos até que os evapore o sol tropical.

***

domingo, 14 de julho de 2013

Os lanternários


Se não mentem os alfarrábios
coube aos romanos antigos
criar a iluminação pública.
Não passavam de tochas
as lâmpadas de então,
que, postas sobre estacas,
iluminavam, solícitas,
quem ia em peregrinação.

Ofício perigoso era esse
de enfrentar as vias ermas
para com o fogo espantar
o receio dos passantes.
À falta de operários
que o pudessem executar,
designavam-se escravos,
que o povo chamou lanternários.

Passaram os séculos,
mas não o primordial
e arraigado medo da noite.
Extintos os escravos,
livres acendedores
foram chamados à lida:
homens em quem o escuro
não infundia temores.

Como antiga confraria
a cada geração recriada,
os combatentes do escuro
viram, por certo, a peste negra
e puseram em risco a sorte
para iluminar doentes burgos
enquanto os outros, entre paredes,
tremiam diante da morte.

Pode-se imaginá-los, ainda,
 varas com chama na ponta,
a iluminar castelos e palácios
em noites de coroação,
ou, quem sabe, de parte a parte,
clareando as noites da cidade-luz
em que regressava, triunfal,
o invencível Bonaparte.

Antes da eletricidade,
foram vistos, operosos,
acendendo ao entardecer
e apagando na alvorada,
sem lamúrias nem fadigas,
as lâmpadas que levavam
às metrópoles ou cidadelas 
as luzes firmes e amigas.

Não consta que alguma vez
tenham tido outra ajuda
além da oferecida pela lua cheia
ou pelas estrelas distantes,
companheiras silenciosas
na missão de tornar seguras,
para os crentes e os descrentes,
as ruas e praças perigosas.

Nem se sabe de pintor antigo
que os tenha posto em tela
nem de músico que os cantou
ou versejador que acaso
neles se tenha inspirado,
embora poesia, pintura e música,
ocupações dos amantes da noite,
sejam filhas do espaço iluminado.

No viver, como no criar,
há que ser como o lanternário,
trabalhador devotado da luz
que termina sua jornada
e, discreto, parte,
sabendo, no íntimo, que iluminar
a escuridão do outro
é obra da mais fina arte.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

40 anos de estrada


Ir da vontade adolescente de crescer
à constatação adulta de que era bom ser pequeno. 
Acalentar a crença juvenil de que a razão é soberana 
até que os primeiros fios brancos da maturidade
mostrem que o coração é rei impossível de destronar. 
Esforçar-se para seguir retilíneo o caminho 
que, ao final, mostra curvas incontornáveis. 
Querer-se sério sem saber que a seriedade, tornada hábito,
acaba revelando a brincadeira instalada na medula da vida.
Eis a trajetória.

domingo, 23 de junho de 2013

Poesia como espanto de existir I


Um poema,
na vida humilde
dos poetas amadores,
não é obra de superior inspiração.
É só o que resta
quando o espírito
já não pode guardar para si
o estranhamento
de ser único e sentir o mundo
como o longo caminho
em que se vai do embrião ao pó
irremediavelmente,
e, para sempre,
só.

Poetai, portanto,
líricos não profissionais.
Poetando,
exorcizai de vossos corações,
com a coragem última
de quem troca o medo do escuro
pela esperança da aurora,
a dor aguda de ser sozinho,
essa dor que, posta em palavras,
e dita sem fantasia,
colhe da realidade amarga
a fruta doce
da poesia.

Imagem: Alfred Sitglitz

domingo, 16 de junho de 2013

A vida em próclise


Não quero a gramática do sentimento
nem as sensações bem-analisadas.
Prefiro o imprevisto do momento
a viver emoções metrificadas.

Não me venham com modos e tempos,
que eu prefiro o coração desregrado.
Me aceitem sem limites e acentos,
ainda que o pronome esteja errado.


Imagem: Cartier-Bresson.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Memento mori

Para Letícia Palmeira, Mariza Lourenço, Carla Maia de Almeida, Silvana Tavano, amizades virtuais com que a vida me presenteou nos tempos em que eu tinha tempo para a web.

Sim, são muitos os perigos desta vida.
Ainda maiores, por certo,
hão de ser os deste ofício,
- ou será vício? -
de recompô-la em palavras
que saem, furtivas, do canto mais fundo do peito
após burlar a vigilância severa da razão.

As frases assim revividas,
em sua traiçoeira docilidade,
terminam por apertar de novo o peito
e sufocar outra vez a garganta
quando o lápis da memória
refaz no papel o traço do vivido.

Escrever é, então, rir duas vezes com a mesma alegria
e padecer em dobro os mesmos males.
E nessa felicidade trazida do limbo
e nesse padecer que sai da sombra
há um matiz sutil de surpresa
tirada de baú empoeirado no sótão.

Mas que ninguém se engane
com essa reescrita do vivido.
Dor e prazer, habitando fora do tempo,
fazem um dia durar um ano,
assombram enquanto embalam
e lembram que não se brinca impunemente
com palavras feiticeiras
que tomam a carne morta do passado
e a ressuscitam, pulsante, no presente.

Imagem: Willi Ronis

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Verdades encontradas no fundo da garrafa: a poesia

Afinal, talvez seja essa, para além de todas as definições intelectualistas ou sentimentais, a essência da fruição da poesia: uma forma de intensificar ao máximo a experiência da palavra, tanto quanto a pintura ou a fotografia constituem um modo de elevar e refinar o sentido do ver. A poesia, como a fotografia e a pintura, não é atividade de quem se contenta com o trivial: destina-se a romper os limites do corriqueiro e a nos embriagar de beleza. Evoé!
(Após quatro taças do Almaviva, que segue sendo um dos vinhos que mais fundo fala à minha alma).

Imagem: Alois Wismeyer uma das pérolas da fotografia antiga (imagem captada em 1906)

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

No meio da estrada, a 40 por hora


Farei 40 anos dentro de dois dias. Pelos sinais no meu corpo — os cabelos já razoavelmente grisalhos sendo os mais visíveis, mas não os únicos —, posso sentir em mim mesmo, enfim, o início daquele ponto que, ao cabo, leva todos nós à decadência física e mental e, por fim, à extinção.
No entanto, se Nietzsche estava certo em sua recomendação — para conservar-se jovem, é preciso que a alma não descanse, que a alma não peça a paz —, tenho razões de sobra para considerar-me, psicologicamente pelo menos, no meio da estrada da existência. Dúvidas aos montes e incertezas na mesma proporção não têm permitido, de modo nenhum, que a minha alma descanse.
E, se a velhice acaso for a constatação de que as contradições foram resolvidas em favor de um acordo de paz interna, com todas ou quase todas as inquietações afastadas, sinto que ainda estou longe dela. Prossigo na luta de ideias e, até segunda ordem, continuo no caminho, ainda que a velocidade de resolução dos meus dilemas não seja sempre a que eu esperava. Mas que me importa a rapidez? Alguém muito mais sábio que eu já disse que a graça do caminho está mesmo é no caminhar, tanto quanto o grande prazer da festa se encontra em prepará-la.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Ler vale a pena


O governo brasileiro reescreveu o ditado. Pelo menos para os que estão no sistema prisional, não se trata mais de dizer que ler vale a pena e sim de afirmar que ler literalmente encurta a pena. Isso foi possível, como informam os jornais, graças ao Programa de Remissão pela Leitura, que autoriza os presos de regime fechado das penitenciárias federais a reduzirem o tempo de pena — na proporção de 4 dias para cada obra — por meio da leitura de livros. Os detentos poderão escolher entre livros de literatura clássica, científica ou filosófica que integram uma lista previamente definida. Segundo a portaria que regulamenta o programa, publicada há três dias no Diário Oficial da União, o preso que aderir à proposta de remissão terá de 21 a 30 dias para ler o livro escolhido, e sua leitura deverá ser comprovada por uma resenha, que não pode ser copiada de nenhuma fonte e passará pelo crivo de uma comissão interna e, posteriormente, pela avaliação do juiz de execução da pena, que decidirá sobre a remissão.
Não é má ideia. A bem da verdade, ela parece ótima. Desnecessário dizer que é bom negócio do ponto de vista do encurtamento da pena: se ler uma obra por mês, o que é algo razoável, o detento encurtará 48 dias por ano. Se se mantiver no programa por 4 anos, terá encurtado mais de meio ano de pena, o que é significativo para quem tem uma pena que chega, por exemplo, a 3 anos de regime fechado. Claro que serão necessários investimentos em criação, manutenção e melhoria das bibliotecas que hoje existem no sistema prisional brasileiro, o que costuma ser fácil de planejar e difícil de executar. Entretanto, é o caso de torcer para que o programa dê certo, não só pelo encurtamento de pena dos presos em razão de uma ação concreta, mas também pelo incentivo que ele representa à leitura. Considerando esse segundo aspecto, o que mais me interessa na condição de professor de literatura, penso que ele contém elementos sobre o papel da leitura que merecem ser discutidos com algum cuidado, tendo em vista sua importância para a sociedade. 
O fascinante no programa, por esse prisma, é perceber que ele se baseia na saudável constatação de que a leitura e o estudo de obras sérias podem transformar as pessoas quando feitos com disposição de aprender. Na mais pessimista das hipóteses, alguém que lê e reflete sobre algumas das obras que constituem o vasto tesouro da literatura, da ciência e da filosofia ocidental ou oriental não sairá da leitura do mesmo modo como entrou nela. Alimento a confiança, reforçada por uma década e meia de magistério, de que se pode, sim, transformar o ser humano pela leitura e o estudo, uma vez que ambos alargam a alma e a tornam mais profunda. Quando pouco, a leitura refletida, metódica e curiosa dessas obras torna até mesmo as mais obtusas das pessoas menos superficiais e mais capazes de entender um pouco da vida. Não haveria de ser diferente com os detentos. Se a intenção da lei é a de recuperá-los e não de puni-los pura e simplesmente pelos crimes que cometeram, um programa que os incentiva a ler é um aliado fundamental.

***

Ao escrever as notas acima, não pude evitar que me assaltasse uma pergunta: quais são os livros que modificaram a minha vida? Que obras e autores tiveram a capacidade de ajudar a formar a minha sensibilidade e o meu entendimento do mundo? A resposta me pareceu muito mais difícil do que eu supunha à primeira vista, na medida em que exige um considerável esforço de memória. Em busca dessa resposta, cheguei a percorrer as estantes que tenho em casa. Foi em vão que imaginei que uma lista seria rapidamente composta, pois tive dificuldades diante dos volumes, tais como a dúvida. Afinal, não é fácil determinar, num estalo do pensamento, qual foi a real influência que um livro teve sobre mim. Para tanto, seria necessário que eu me dispusesse a uma jornada de autoavaliação. Não me julgo capaz de fazê-la ao correr da pena. Prefiro, pois, ir listando aos poucos, para mim mesmo, as obras que me modificaram o pensamento e a sensibilidade e me provaram que ler tem valido a pena. Abaixo está a primeira delas. Se não me faltar engenho e arte, a lista seguirá. 

***

Imagem: fotografia antiga dos bosques em torno do Lago Walden, em Massachusetts
O ponto em que Thoreau construiu sua cabana no século XIX 
está assinalado com pedras.


1- Walden ou a Vida nos Bosques (1854), do norte-americano Henry David Thoreau, é, talvez, o livro de impacto mais profundo que já me atingiu. Para escrevê-lo, o autor passou cerca de dois anos morando numa cabana que ele próprio construiu nos belos bosques que ficam próximos do Lago Walden, em  Massachusetts, que ficou mundialmente famoso em razão disso. Thoreau, um professor erudito formado em Harvard, preferiu os bosques por julgar que havia hipocrisia e injustiça demais na civilização. Misto de diário, caderno de reflexões e de observações científicas e estéticas sobre as paisagens que estão fora do homem e aquelas que se encontram dentro dele, Walden situa-se no momento histórico do Romantismo. Mas provou ser um livro para todos os tempos futuros, na medida em que antecipou o pacifismo, o movimento ecológico e e a defesa das minorias sociais. Como se não fosse o bastante, fez muito pelo movimento de defesa dos direitos civis, pela renovação da educação e pelo estabelecimento de uma nova mentalidade, mais crítica e aberta, a respeito dos caminhos e descaminhos da sociedade contemporânea. E tudo com uma linguagem mágica, que encanta pela capacidade descritiva e reflexiva.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Ando em dificuldades todas as vezes em que, diante de um poema ou texto que trate dessa inefável e intangível ideia que é a felicidade, um aluno ou aluna me pergunta, com o ávido interesse dos aprendizes que têm alguma simpatia pelo mestre, se eu, afinal, sou feliz. Meu embaraço não é jogo de cena: constitui algo bem mais prosaico. E mais profundo. É que simplesmente não sei se se podem dizer felizes aqueles (creio haver outros além de mim) que mergulham nos dias e noites com uma inquietação branda, mas persistente, sem foco definido e sem origem rastreável, e convivem com um desespero profundo, mas felizmente momentâneo, ao perceber que têm menos certezas do que gostariam e mais perplexidades do que seria desejável para uma vida confortavelmente vivida sem sobressaltos. Não, eu não sei se sou feliz. Mas não me considero desafortunado por isso. Há de entender o que digo aquele ou aquela que, como eu, se sente vez por outra um estrangeiro na própria vida, espantando-se com tudo à sua volta, como se tivesse acabado de desembarcar num país distante e desconhecido.  

Imagem: Alfred Sieglitz

Uma longa página em branco

Faz hoje sete meses que nenhuma linha é posta aqui. E mais ou menos o mesmo período se passou desde que assinei o meu último artigo na imprensa. Por recomendações médicas, baseadas num dos meus rins, que resolveu parar de funcionar e lembrar-me da incontornável perspectiva do fim, diminuí o número de afazeres. Foram sete meses pensando na vida e longe das polêmicas da política local, o que não deixa de ser uma falta para alguém que, por ser proprietário de um jornal, ganha a vida buscando notícias e redigindo-as. Pensei que esse seria tempo suficiente para um parto, ainda que prematuro, de ideias a respeito do ato de escrever e do papel que ele tem na minha vida. Mas nada nasceu de mim nesse período. Não morri nem adoeci por parar de escrever. Senti apenas um grande vazio, como se diante de mim se estendesse uma longa página em branco. Volto à ativa, sem promessa de regularidade, sem me preocupar com o número de leitores, apenas para preencher o longo e silencioso branco que me olha e me pede, dia após dia, que lhe lance algumas letras, ainda que esse lançar seja apenas um ato sem qualquer pretensão além do mero desabafo. Que seja. Viver é contar. 

Imagem: Robert Adams

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Intervalo felliniano

A leitura de poesia perdeu, ainda que momentaneamente, a batalha pela minha atenção no tempo livre. O vencedor é o cinema europeu, sobretudo o dos anos 50 a 80. Numa sequência que já dura dois meses, redescobri o Bergman de "Vergonha" e "A paixão de Ana", que é também o soberbo diretor de "Fanny e Alexander". Truffaut compareceu ao meu festival doméstico de cinema revisitado com "Os desajustados", obra-prima tocante em preto e branco.
A culminância da série, até aqui, fica com o Fellini de "Armarcord" e "E la nave va". Nenhuma pessoa afeita às coisas do espírito deveria morrer sem antes assistir aos dois filmes do mestre italiano. Como não admirar sua magnífica coragem de se opor ao cânone de Hollywood com humor peculiar, personagens que ousam ser complexos e enredos com andamento independente da corrente principal da narrativa cinematográfica contemporânea? Talvez eu não tenha, afinal, me afastado da poesia. Pois é poesia o que se vê em algumas das produções do cinema europeu.

Imagem: fotografia de Karl von Uthof/1898

sábado, 12 de novembro de 2011

Poesia como espanto de existir II

Poesia
é o que ocorre
quando a mente,
diante do mundo,
não tem mais como
conter o susto no peito
e grita para se fazer ouvir,
como se badalasse um sino,
sabendo que a música do grito
será lembrada por muito tempo,
mesmo quando tiver sido esquecido
o espanto que pôs a garganta em movimento.

Lírica agridoce

Chega da perspectiva fácil das telenovelas,
que mostra o mundo sem expor suas mazelas.
Nem tudo que se deseja é um beijo no altar
ou champagne com buquê jogado ao ar.
Basta das visões de mundo com grinalda
e das estéticas que exorcizam cada lauda,
decretando, solenes, que não cabe no verso
nada que insista em ser controverso.

Fiquemos - por que não - com a vida real,
que às vezes, cá para nós, nos trata mal,
mas que, em contrapartida, tem esse tempero
em que se mistura, na dose certa, o desespero -
a nos ferir com a sua ponta fria de lança -
à persistente, ainda que descabida, esperança
de que o mundo, essa quase indomável fera,
se torne um pouco do que o ideal espera.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Dúvidas acadêmicas


O azul do céu

terá mais beleza

ou mais clareza

para quem é bacharel?


A brisa será mais pura

a aragem mais leve

ou mais branca a neve

quando há licenciatura?


Há na flor algum aroma

que não pode ser aspirado

nem mesmo imaginado

se não houver diploma?


A dor que não se vê

e que aperta o peito

doerá do mesmo jeito

em quem tem PHD?


E o dia que corre sem pausa

e dilui a vida no tempo?

Por acaso é mais lento

para doutores honoris-causa?

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Lições de janeiro

Para Miguel, na expectativa de que volte com outras histórias.

Um par de tênis jogados na sala,
Com muito barro nas solas,
E um pouco nas laterais,
Limpa o ambiente
E mantém afastada dele
A doença da seriedade.

Meias molengas, já sem o elástico,
Combinam com os dias de chuva.
Camisas mais largas, com golas desmaiando,
E mangas por onde passariam dois braços,
São tecnicamente as mais recomendadas
Para as longas guerras de travesseiro.

Deve haver uma moratória de banhos.
Um ou outro dia cheio de afazeres
Em que se deixou de ir para o chuveiro,
Sob a justificativa bastante razoável de se ter pegado no sono
Durante a exibição do desenho animado,
Não deve ser cobrado com juros no ano seguinte.

Beijos na testa ou nas bochechas
Nos quais o contato dos lábios com a pele
Dura menos de 4 segundos
Têm grave defeito de fabricação
E precisam ser refeitos
Por direito do recebedor.

Não se deve apertar apenas uma das bochechas,
Sob pena de criar-se assimetria bochechal,
Com consequente risco de ciúmes da parte esquecida.
O aperto deve ser feito com o polegar e o indicador,
Friccionando-se levemente a pele
Em suaves movimentos circulares.

Canudinhos de refrigerante usados no cinema
Precisam ser unidos até formar um círculo,
Do contrário, o filme não sai da cabeça.
Em hipótese nenhuma se deve encomendar pizza
Sem que junto venha a Coca-Cola,
Pois isso seria o mesmo que ir para o campo sem bola.

Tardes de filmes de aventura,
Quando desacompanhadas de pipoca,
Não preenchem os requisitos mínimos
Para entrar no Registro Geral de Janeiro
E, no final das contas, nem deveriam existir:
São como um ioiô sem linha.

Abraços de despedida não têm valor legal
Nem entram para a memória histórica das férias
Se não forem acompanhados daquele cumprimento
Em que as mãos se tocam no ar, abertas,
Como fazem os jogadores de vôlei
Ao marcar um ponto que vira o jogo.

Tem início na despedida o Torneio Interestadual de Memória,
Disputado entre quem fica e quem vai.
Ganha quem conseguir memorizar até janeiro que vem,
Sem a ajuda de anotações, e com o maior número de detalhes,
O ponto da estrada onde o carro vira a curva da saudade
E some da vista de quem olha.

As quatro estações da poesia



Primavera
A poesia floresce impunemente,
E fala sem impostação.
Escrever vem do coração,
Que não pode conter o que sente.
Verão
Leituras alteram a consciência.
Criar já não é ato espontâneo.
Há que ser contemporâneo
E queimar ao Sol da influência.
Outono
Amarelece a emoção pura.
É tempo de racionalizar o poema.
Retire-se dele toda inspiração pequena.
E busque-se o essencial que perdura.
Inverno
A perspectiva do fim harmoniza tudo.
O poeta uniu razão e sentimento.
Sua voz, inconfundível, toma alento
E ecoará mesmo quando ele já estiver mudo.

sábado, 15 de outubro de 2011

Outro epitáfio

Não é menos doce o fruto
Ou menos digno saboreá-lo
Por ser breve e fugidio
O tempo entre o verdor
E o inevitável amadurecimento.
Nem menos intensa será a vida
Ou menos cheia de alegrias,
Em razão de ser fugaz
A consciência que emergiu
Entre o início e o fim do corpo.
Não há tragédia
Na flor que se tem por valiosa
Por ser, não apenas bela,
Mas também efêmera.

Imagem: Henri Cartier-Bresson

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A dor pós-moderna


O poeta pós-moderno
É um demolidor.
Para começo de conversa,
Derrubou a venerável tradição
De fingir a dor que de fato sente,
Alegando que esse charme, já antigo,
Não mais lhe convém.

O poeta pós-moderno,
É um pragmático.
Quando tem uma inquietação metafísica
Ou uma luxação no joelho
Admite de cara lavada,
Compra um anti-inflamatório
E põe tudo em versos livres.

O poeta pós-moderno
É um descarado.
Tem a desfaçatez e a irreverência
De dizer, sem figuras de linguagem,
Que não precisa de padecimentos,
Sejam seus ou dos outros,
Para fazer sua poesia.

O poeta pós-moderno,
Não está nem aí para fingimentos ou verdades.
Prefere descrever pernas e cinturas.
Ou, o que é pior, faz piada metalinguística
Usando a sagrada intertextualidade
Para debochar dos que ainda contam sílabas
E nelas põem suas dores poéticas.

Imagem: Robert Doisneau

Balada agnóstica


Quando morrer,
Vou indireto para o céu.
Chegarei lá, se puder,
De modo oblíquo,
Como quem caminha ao léu.

O caminho tortuoso se explica:
As dúvidas acumuladas
Nestas décadas de vida
E a desconfiança dos dogmas
Podem me ser muito pesadas.

Com tal peso nos ombros
Talvez eu desça às profundezas
E veja, em sua fúria,
O coração dos vulcões,
Ou a raiz das correntezas.

Se não estiver tão pesado,
Pode ser que voe um pouquinho
E plane sobre estradas e avenidas,
Qual turista curioso
A olhar de cima o burburinho.

Nas alturas ou precipícios,
Estarei conformado à incerta sorte.
Afinal, por que busquei evidências
De que existe um reino feliz
Numa vida além da morte?

E quem me mandou perguntar,
Como criança de língua inquieta,
O que foi feito das almas
Dos que morreram antes da revelação
Que ensinou ao mundo a fé correta?

Pior: por que eu quis saber
Sem medir o tamanho da heresia,
Por que cada credo se diz o único verdadeiro
Já que são tantos no planeta,
Todos jurando sua ortodoxia?

Sim, vou indireto para o céu,
Ou, quem sabe, para o inferno.
Como um pagão, sigo fazendo perguntas,
Sem saber se me elevam às paragens celestiais
Ou me precipitam ao fogo eterno.

Imagem: Herbert Arthur Hess (1901)