sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Escrever é revirar entulhos

Maria das Petecas era o nome de um tipo popular de minha cidade que juntava coisas que as pessoas geralmente descartam, como pedaços de madeira, linha, arame e pano. Artesã talentosa, embora alguns preferissem vê-la como uma mendiga exótica, ela revirava entulhos e de lá extraía material para fazer bonecas e as petecas que lhe valeram o apelido. Todas as peças, presenteadas gentilmente a amigos ou conhecidos, tinham algo de peculiar na mistura de materiais e cores. Eram todas diferentes, mas apresentavam um padrão que parecia se repetir, como uma marca, de modo que bastava olhá-las para saber quem as havia feito.
Maria das Petecas me volta à memória sempre que penso no ofício de escrever literatura. Acredito que esse ofício se parece mais com o revirar entulhos do que com a atitude limpa e organizada de descartar aquilo que não serve. O cientista ou o jornalista podem, na grande maioria das vezes, encarar sua tarefa de escrita como uma busca higiênica de pureza de pensamento, em nome da qual devem ser jogadas fora as fixações de infância, idiossincrasias, tensões internas, contradições existenciais não resolvidas e perplexidades que insistem em permanecer.
Quem escreve literatura coloca-se na posição oposta. Seu papel é o de desconfiar da limpeza, na medida em que ela torna semelhantes todos os armários e gavetas da mente. E não há literatura feita de semelhanças. Pelo contrário: a literatura que vem de dentro brota de fixações, contradições, tensões e, não raro, dos traumas e problemas. As grandes obras muitas vezes não são mais do que o registro textual de um acerto de contas com as profundidades existenciais. O escritor autêntico, famoso ou não, é a pessoa que tem coragem suficiente para revirar em público os seus entulhos internos e tirar deles a sua arte. Essa arte é oferecida à sensibilidade daqueles que, pela leitura, poderão, quem sabe, adquirir gosto por olhar dentro de si mesmos e revirar o próprio entulho num impulso criativo.

7 comentários:

Sueli Maia (Mai) disse...

Admiro a sua 'respiração'. Perfeita pontuação, parece que você respira pelo outro, com o outro, dentro do outro como num 'mergulho' que tras o outro do fundo do mar. E assim, Hoje, como nunca tanto, você me emocionou, Márcio. Hoje e finalmente, você me alcançou. E sem Talvez e sem mais porques.

Mas, dedo no olho e chute abaixo da linha da cintura não vale, viu? Tô sem colírio, sem neosaldina e sem óculos escuros, professor.
Beijo você.
Obrigada!

Anônimo disse...

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Anônimo disse...

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Helô Müller disse...

Mais uma vez perfeita a sua colocação... Cada linha que se escreve, retira as palavras da alma, das entranhas, e não há como ser diferente! Se não há autenticidade e um pedaço nosso, no que escrevemos, nada faria sentido! O escrever é ter mesmo a coragem de desnudar-se frente a uma folha em branco, sem a menor preocupação e pudor com o que os possíveis leitores acharão do seu "strip-tease" da alma ... rs
Beijos desnudos !
Helô
Adorei a analogia com a Maria das Petecas ! rs Uma criatividade e tanto na perfeita associação de idéias !!

Helô Müller disse...

Uma mera curiosidade feminina... rs Essa escrita oriental do anônimo, é traduzida por vc, ou trata-se de alguma brincadeira ?? rs Já tinha notado em outros comentários e fiquei bastante intrigada! rs

Letícia disse...

Na maioria da vezes, muitas vezes, obras literárias surgem de questões existenciais. É como um conflito que gera resultados. Escrever é assim, em minha opinião.

Carolina disse...

É, você disse basicamente tudo. Pra mim, escrever sempre foi revirar entulhos... e fiz isso sem perceber. Escrevo sem ficar medindo muito as palavras, é melhor assim.
Um beijo