O francês Gaston Bachelard (1884-1962) era nos anos de 1950 o equivalente mais próximo que a Europa tinha de um filósofo com jeito de Papai Noel. A semelhança ia além dos cabelos e barbas brancos e do olhar doce que dá a alguns velhos uma beleza serena. Bachelard era, de fato, um bom homem, que a imprensa de seu tempo retratou como um professor de modos calmos e disposição infatigável de acolher todos aqueles — e eles foram muitos — que se interessavam por sua obra.
Há algo de sui generis nessa obra e na personalidade intelectual de Bachelard, e isso deve muito ao fato de ele juntar em seus escritos dois temas distintos: a ciência moderna, com sua parafernália conceitual inspirada sobretudo na Relatividade de Eistein e na Mecânica Quântica de Planck, e a poesia, com sua profundidade lírica. Curioso é que os dois lados não se misturam: Bachelard estava convencido de que era preciso ter o máximo rigor para refletir sobre a ciência e a máxima liberdade para experimentar a literatura.
Num dado momento de sua vida, quando já tinha publicado densos trabalhos de análise do pensamento científico, Bachelard descobriu as imagens poéticas e passou a produzir livros de intenso lirismo que analisam obras de diversos autores. Ele cunhou então uma fórmula de grande beleza para exprimir essa duplicidade de interesse: o homem diurno da ciência, que deseja tornar todos os conceitos claros, e o homem noturno da poesia, que deseja a penumbra para sonhar com as imagens evocadas pelos poemas.
A comunidade pensante do Ocidente deve ao Bachelard Noturno um tratamento interessante e inspirador do tema da solidão. Seu pensamento trabalhou e aprofundou a idéia de que a solidão é criadora, na medida em que é nela que o espírito cria e alarga seus horizontes, reconectando o passado ao presente por meio da memória e projetando o sonhador no futuro por força da imaginação. Esse processo é feito durante o devaneio, o ato solitário de sonhar acordado a partir de imagens poéticas.
O devaneio assume relevância central na obra de Bachelard. O filósofo elaborou uma classificação em que eles variam conforme o tipo de imagem que os inspira. Assim, por exemplo, há devaneios do ar, da terra, da água e do fogo. Foi ao analisar estes últimos que Bachelard teve a idéia de escrever um pequeno livro que pode ser incluído entre as mais belas produções do pensamento ocidental do século XX. Seu título é poético —A chama de uma vela — e seu objetivo não é outro senão traçar uma pedagogia do ato de sonhar acordado.
Desfazendo-se de qualquer método filosófico de análise, Bachelard usa seu próprio caso para ilustrar a idéia de que o leitor ou a leitora que tem um livro aberto diante dos olhos, sob o clarão de uma vela, fica tentado a dar asas à imaginação: "Temos pela chama uma admiração natural, ouso mesmo dizer: uma admiração inata. A chama determina a acentuação do prazer de ver, algo além do sempre visto. Ela nos força a olhar", diz ele, e ao ler isso ficamos tentados a imaginar o bom velhinho com os olhos brilhando diante da vela.
Nas breves páginas de seu livro, o filósofo, vendo aproximar-se o apagar de suas próprias luzes, faz uma tocante exortação ao sonho que dignifica e justifica os momentos de solidão em que nós, leitores, nos abrimos em devaneio para as imagens poéticas banhadas pela chama trêmula das velas: "A chama, dentre os objetos do mundo que nos fazem sonhar, é um dos maiores operadores de imagens. Ela nos força a imaginar. Diante dela, desde que se sonhe, o que se percebe não é nada comparado com o que se imagina".
Seguindo por um caminho que confronta a tradição de pensamento que estimagtiza a fantasia, Bachelard afirma de modo corajoso a dignidade do devaneio e seu sentido profundo: "Um ser sonhador feliz de sonhar, ativo em sua fantasia, contém uma verdade do ser, um destino do ser humano". Depois de ler passagens como essas, vemos o quanto foram preciosos aqueles momentos que, da infância à idade adulta, passamos em solidão criativa diante de uma página cheia de imagens.
A chama de uma vela tem entre seus entusiastas brasileiros nomes como o do escritor Rubem Alves, que a citou em mais de uma crônica. A partir dessa citação, o livro se tornou conhecido e procurado. Nem isso, porém, animou as editoras a produzir uma segunda edição em português. A única disponível, esgotada há muito, foi publicada em 1989 pela Bertrand Brasil, com tradução de Glória de Carvalho Lins, e transformou-se numa espécie de raridade disputada pelos leitores no mercado livreiro nacional.
Por isso, ou por obra do destino, precisei esperar muito para conseguir um exemplar. Ele chegou no início deste mês, pelo correio, vários anos depois de eu ter lido pela primeira vez uma referência à pequena grande obra de Bacherlard. Nestes dias que antecedem a chegada da Primavera, este adepto do devaneio em que me transformei desde a infância recebeu o pequeno volume como quem recebe um caro amigo aguardado há longos anos. Sinto que valeu a pena esperar, como mostram as passagens a seguir, que para mim tiveram o sabor de um presente de natal antecipado:
A chama é um mundo para o homem só.Então, se o sonhador inflamado fala com a chama, fala consigo mesmo. Ei-lo poeta. Ampliando o mundo, o destino do mundo, meditando sobre o destino da chama, o sonhador amplia a linguagem, já que exprime uma beleza do mundo. (...) O próprio psiquismo se amplia, se eleva. (...) Para atingir esta 'altura psíquica' é preciso encher todas as impressões, insuflando-lhes matéria poética.As fantasias da pequena luz nos levam de volta ao reduto da familiaridade. Parece que existem em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxuleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis. Comunga com os valores que lutam, portanto, com a luz fraca, que luta contra as trevas. (...) Com a fantasia da pequena luz, o sonhor se sente em casa, seu inconsciente é como se fosse sua casa. O sonhador! — esta duplicata de nosso ser, este claro-escuro do ser pensante — tem, na fantasia da pequena luz, a segurança de ser.Quem confiar nas fantasias da pequena luz descobrirá esta verdade psicológica: o inconsciente tranquilo, sem pesadelos, em equilíbrio com sua fantasia, é exatamente o claro-escuro do psiquismo. (...) Imagens da pequena luz nos ensinam a gostar desse claro-escuro da visão íntima. (...) Um sonhador (...) compreenderá instintivamente que as imagens da pequena luz são lamparinas íntimas. Suas luzes pálidas tornam-se invisíveis quando o pensamento trabalha, quando a consciência está bem clara. Mas quando o pensamento repousa, as imagens vigiam.O aspecto poético de uma fantasia nos faz conformarmo-nos com esse psiquismo dourado que mantém a consciência deperta. (...) A chama nos mantérá nessa consciência da fantasia que nos mantém acordados. Dorme-se diante do fogo. Não se dorme diante da chama de uma vela.Assim, nos tempos em que se sonhava pensando, em que se pensava sonhando, a chama da vela podia ser um sensível termômetro da tranquilidade da alma, uma medida da calma fina, de uma calma que desce até os detalhes da vida — de uma calma que dá uma graça de continuidade à duração que segue o curso de uma fantasia pacífica. Quer ficar calmo? Respire suavemente diante da chama leve que faz sossegadamente seu trabalho de luz.
6 comentários:
Márcio,
Diante de um título tão sugestivo, não encontro palavras para comentar. Tomo emprestadas as de Rubem Alves:
"As velas são diferentes. Choram enquanto iluminam. Suas lágrimas nascidas do fogo transbordam e escorrem pelo seu corpo. Choram por saber que para brilhar é preciso morrer. Não é possível contemplar uma vela no seu trabalho de luz sem sentir um pouco de tristeza. Sua chama modesta, modulada por indecisões e tremores, faz-me voltar sobre mim mesmo. Também sou assim. Minha chama vacila ao ser tocada pelo vento. Por isso, posso chamá-la de minha vela. Somos feitos de uma mesma substância. Temos um destino comum".
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