O Ira! ocupa um lugar de destaque na trilha sonora dos anos em que eu passei de pré-adolescente a adulto. A mistura de humor, nonsense e reflexão existencial contida nas letras de Nasi Valadão e Edgar Scandurra sempre me pareceu uma das melhores coisas que o rock brasileiro produziu a partir dos anos de 1980. Foi de uma das letras da banda, a de "Boneca de Cera", que me lembrei ao ler a edição de 16 de agosto do caderno "Mais!", da Folha de S. Paulo, que traz, como destaque de capa, textos sobre o boom das oficinas literárias no país. Recordei, em especial, o trecho final da letra, que tem duas frases que incluo entre as mais inspiradoras do rock brasileiro:
Foi o tempo que tomou suas palavras/Mas dê um tempo para que
seu imenso vazio seja tomado pela vontade de criar e viver.
seu imenso vazio seja tomado pela vontade de criar e viver.
Sempre me intrigou o fato de Scandurra, autor de "Boneca de Cera", ter colocado o "criar" antes do "viver" na sequência da frase. Pode-se ver nisso mera exigência da musicalidade. Não vejo, porém, nenhum prejuízo para o aspecto musical se a ordem dos termos for inversa, até porque os versos da letra não têm rimas. Assim, nestes tempos em que se valoriza a autonomia da obra de arte em relação a seu autor, o que implica a liberdade de interpretação dela pelo público, gosto de brincar com a idéia de que há uma filosofia de vida por trás dessa precedência do "criar" em relação ao "viver" na letra da canção. É como se o grande artista que é Scandurra quisesse nos dizer que a vida sem a criação, no sentido amplo desta última palavra, não vale a pena.
Tendo essa idéia em mente enquanto lia os textos do "Mais!"sobre as oficinas de criação literária, vi que há motivos para crer que um número crescente de pessoas parece estar entendendo que criar está para a vida tal como respirar está para os pulmões. É revigorante saber de donas de casa, profissionais liberais, servidores públicos, estudantes e empresários que se descobrem escritores. Desnecessário dizer que essa descoberta tem um inestimável valor existencial, na medida em que enriquece, por meo da arte, a vida dessas pessoas. Coisa semelhante, aliás, passa-se com a blogosfera literária, um canal para fazer aflorar no cotidiano a veia criativa que, afinal, dá sentido à vida.
Considero bela essa ânsia de criação, e parece-me que é ela que explica, em última instância, a grande procura atual pelas oficinas de criação literária. Acho importante, portanto, louvar essa instituição de importância crescente nas letras nacionais. Isso não me impede, entretanto, de problematizar alguns aspectos das oficinas de criação literária, em especial o que diz respeito aos limites do ensinar a escrever literatura. Diferentemente do que ocorre com o ensino de argumentação, em que as possibilidades de inovação podem ser mais facilmente situadas dentro de marcos teóricos já estabelecidos, com maior objetividade na verificação de resultados, formar escritores sérios é algo que se faz com muito menos segurança teórica.
De certo modo, formar autores que levem a sério a literatura — um objetivo que as boas oficinas de criação literária devem reivindicar como seu — implica uma espécie de pulo num abismo escuro: dificilmente se sabe de antemão o que será encontrado quando se chegar ao fundo. A produção de literatura séria, entendida como a atividade de quem vê na escrita criativa algo que vai além de mero passatempo a serviço do combate ao estresse ou ao tédio, supõe a pesquisa rigorosa de possibilidades, a seleção de recursos a partir de um projeto pessoal consistente e coerente e, no limite, a busca obstinada de uma visão que, negando as fórmulas acabadas, instaure o novo no âmago da tradição.
As boas oficinas literárias serão, portanto, aquelas cujos mestres têm a coragem de assumir para si mesmos e para sua audiência que não há caminhos prontos. No máximo, há nelas referências que podem ajudar o aspirante a escritor a se situar no conjunto da produção literária significativa para o seu contexto, contribuindo para que ele se torne capaz de ler sua própria produção de um modo mais crítico. Mas esse ponto de vista pode ser atingido sem oficinas de criação literária, e frequentemente é atingido dessa maneira. Daí que os bons mestres devem ter também a coragem de dizer que suas oficinas de criação são apenas um caminho, não o único ou o melhor caminho dentre os disponíveis.
Tais mestres devem ter a coragem de olhar a tradição literária e dizer a seus discípulos que a criação mais significativa em literatura tem sido muitas vezes o produto de uma mentalidade que toma como princípio constitutivo do ato de escrever o rompimento com fórmulas prontas ou a recombinação de fórmulas já existentes. A exploração psicológica dos grandes romances do Romantismo, a crítica social do Realismo e a iconoclastia irreverente do Modernismo não puderam ser ensinadas. Tiveram que ser inventadas. No limite, as melhores oficinas literárias estão baseadas numa espécie de contradição nos termos: elas ensinam que o mais importante na literatura séria é transcender as regras.
Esse pensamento me leva de volta ao que Edgar Scandurra fez ao colocar a vontade de criar antes da vontade de viver na letra de "Boneca de Cera". Parafraseando o letrista, digo que, para não perder suas palavras no tempo, cada aspirante só passará a autor de sua própria obra quando chegar o tempo em que for capaz de escrever por conta própria, sem regras acabadas e fórmulas prontas. Quando esse tempo chega, o aspirante a literato deixa de ser apenas autor de livros. Ele passa a escrever o roteiro da própria vida enquanto escreve sua obra, entrelaçando esta naquela para preencher o seu imenso e abençoado vazio com a criatividade que, afinal, dá sentido à vida.
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"Boneca de Cera", do Ira!, na interpretação marcante de Nasi, um gigante nem sempre compreendido da música brasileira, pode ser ouvida aqui.
2 comentários:
Antes mesmo de chegar ao fim de seu texto, eu já estava ouvindo a música. Também gosto do Ira. Faz parte de minha trilha sonora e ouço sempre. Um dos motivos que me fazem vir aqui. Sempre me encontro.
E legal ver oficinas, criadores e saber que muitos tendem a criar seus próprios caminhos. Ainda acredito que há muito o que ser criado, pensado, inventado. A arte não estanca. Talvez pareça ingenuidade minha, mas creio que o novo está sempre por vir.
Um exemplo desse Novo é a sua forma de escrever textos que são críticos e analíticos, mas trazem sempre mais vida ao que seria apenas uma mera análise literária.
É isso. E vou ouvir mais Ira.
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