Elogio da incompletude
Pessoas muito bem resolvidastêm nos olhos a expressão vitoriosade quem não hesita. Vistas de perto,parecem o tipo de gente que está à vontadeequilibrando-se entre dois prédios de 20 andaresem dia de vendaval.Pela desenvoltura de seus gestos,sem vestígio de acanhamento,conclui-se que conhecem o passado e o presentee suspeita-se de que sabem, de algum modo,como será o futuro."Medo" parece-lhe uma palavraempoeirada dentro do dicionário."Dúvida" lhes soa como um conceito abstratocom o qual não se deve perder tempo."Fragilidade" não é vocábulo do seu idioma."Solidão" é a palavra usada por aquelesque não sabem bastar-se a si mesmos.Quando têm problemas,as pessoas muito bem resolvidasdão a eles o tratamento pragmáticoque dariam aos contratempos.E jamais se desesperam.Mesmo nas piores circunstâncias,são firmes ao falare falam com o timbre de quem tem razão.Contestadas, riem um riso superior,como quem vive na estratosfera das certezase se compadece das pessoas comuns lá embaixo,incapazes de se elevarem do chão de suas inseguranças.***Todas as noites, antes de me deitar,agradeço a Deus por não ser muito bem resolvidoe peço a Ele que me conserve assim.Não sei o que seria de mimsem minhas hesitações, minhas inseguranças,minhas impaciências, minhas dúvidas e ignorâncias.Não ouso sequer imaginaraquilo em que eu me transformariase perdesse meu sentimento de incompletude.Deus me livre da perfeição.
(Escrito depois de quatro taças de um encorpado Periquita, safra portuguesa de 2006, no meu "Caderno de Verdades Encontradas no Fundo da Garrafa")
5 comentários:
É um sério problema esse. Todo mundo quer ser resolvido, saber de tudo, sentir tudo e ainda sair lucrando com as dores dos outros. Não gosto de me dizer mulher resolvida. Dessa forma, eu estaria morta. A vida é sempre uma busca. Farei a mesma oração que você. Vou agradecer a Deus por me deixar ter dúvidas e insegurança.
E vou dizer. Gosto muito de seus textos. Muito mesmo. E não faço análise crítica. Eu tento interagir com o que você diz.
Bjos.
o pior é que no fundo da garrafa é q se vê que naquele instante ela que te encheu de alguma coisa, parece estar ela mesma 'vazia'...
Talvez teu texto me inspire a pensar nisso e não creio que ninguém 'lucre' com as dores alheias.
Tenho muita dúvida se existe alguém 'bem resolvido' nesse 'Dante' pós moderno.
Sei lá, Márcio o que é ser bem resolvido?
Um problema matemático pode ser mas o humano?
não creio, amigo. Não creio e duvido de quem o afirme.
Bonecos de um e noventa e nove com aquele risinho plástico, são bem resolvidos.
Mas eu li a advertência. Aquela porcaria é tóxica.
Te deixo um abraço e minha loucura.
Putz fiquei com sede nostálgica da tua bebida...
Beijos.
Mai
Brilhante o teu texto. Fez-me lembrar muito um muito antigo poema do meu amigo Eduarto Pitta e não resisto em transcrever-te onde fazes magicamente a síntese de quase tudo:
"Não ouso sequer imaginar aquilo em que eu me transformaria se perdesse meu sentimento de incompletude. Deus me livre da perfeição."
Perfeito.
Sobre o texto anterior e o bom vinho português, espero que, quando vieres até estes lados,regresses ao Brasil com uma meia dúzia de garrafas - Douro e Alentejo, cá do sítio, oferta minha obviously - que te ajudem a melhor a perfomance das sextas-feiras.:)
Um Abraço!
Guilherme
P.S.
A Erica, que está aqui no escritório a trabalhar, pediu-me para te mandar um beijinho.
Fica virtualmente endossado.
G.
Caro Márcio:
Tanto eu como a Erica - que vos temos a AMBOS na lista dos blogues favoritos que seguimos - verificámos que a CLEA nos barrou o acesso.
És capaz de saber o que se passa?
Desculpa o incómodo.
Abraço!
G.
Guilherme
Olá, daqui fala/escreve Rita Pimenta, do blogue português Letra Pequena. No entanto, não venho falar de literatura infantil, mas de vinho...
Hoje estive nas caves José Maria da Fonseca (Azeitão) e ao chegar aqui gostei de ver a imagem de dois Periquita. Mais ainda, adorei que usasse a palavra "safra", que está em desuso em Portugal e que acho muito expressiva. Por cá tem vindo a ser substituída pelo vocábulo "colheita". Nada contra, mas menos musical...
Será efeito do tinto (Garrafeira CO de 1999) que se consumiu esta noite em boa companhia?
Um abraço e obrigada pelas palavras simpáticas que tem dirigido ao (e sobre o) Letra Pequena
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