sábado, 1 de janeiro de 2011

Para começar o ano, uma tocante visão da infância

Infância, de Maksim Górki (1868-1936), que li neste feriado, em edição da Abril Coleções, fez com que eu superasse alguns preconceitos em relação ao ícone maior do realismo russo. Se Górki foi feito modelo de arte literária realista numa empobrecedora estratégia de policiamento cultural da União Soviética levada a efeito por Lênin e Stalin (os quais o escritor criticou ao ponto de se suspeitar que o último o tenha mandado envenenar), isso não impede de perceber a grandeza deste primeiro livro de sua trilogia autobiográfica, que a crítica considera o ponto alto de sua carreira como prosador.
Em Infância, que compõe uma habilidosa paisagem da sociedade russa da década de 1870, com as extremas desigualdades que décadas depois iriam funcionar como estímulo à revolução socialista, encontrei uma demonstração ímpar de perícia narrativa, uma técnica admiravelmente segura de apresentação dos personagens e uma prova do extraordinário domínio dos meios expressivos atingido pelo autor. Essas qualidades provaram-me que o realismo não é incompatível com uma visão mais elaborada da natureza e da história. Ao lado de Tchekov, outra de minhas persistentes admirações na literatura russa, coloco Górki agora entre os grandes autores do século XIX que mexem com a minha sensibilidade.
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Lendo este Infância, foi impossível não me lembrar do livro homônimo de Graciliano Ramos. Como a obra de Górki, a do escritor brasileiro consiste num relato de não ficção. Em comum entre os dois livros, além da temática extraída de um mesmo período da vida, existe a organização da narrativa em quadros mais ou menos independentes (embora as partes do texto de Górki pareçam mais entrelaçadas umas às outras do que as de Graciliano, que optou deliberadamente por fragmentos).
As semelhanças evidentes entre os projetos sugeriram-me uma conjectura: a obra-prima de verdade humana composta por Górki, na qual a compreensão profunda das pessoas não permite em nenhuma circunstância transformá-las em tipos ou caracteres facilmente rotuláveis, pode ter sido, quem sabe, o modelo de Graciliano, um realista convicto (embora desiludido) que chegou a viajar à União Soviética e discutir os rumos da arte socialista que lá se fazia na primeira metade do século XX.
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Estou empenhado em perder o lamentável hábito de inserir ilustrações nestas páginas sem lhes indicar devidamente a autoria. O quadro cuja reprodução ilustra esta postagem é "The rooks have returned" (1871), de Alexei Savrasov, um admirável exemplar da pintura romântica russa do século XIX que, pelo seu clima soturno, me lembra outro grande romântico, o alemão Caspar David Friedrich, um de meus paisagistas prediletos.

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