Um balanço retrospectivo me levou a uma constatação inesperada sobre a minha vida: nunca, nos últimos 36 anos, 11 meses e 8 dias, escrevi uma carta de amor ou de ódio a quem quer que seja. Aliás, eu muito raramente escrevi cartas que falassem de sentimentos. Nem mesmo nesta era do e-mail me aventurei a longos textos que trouxessem algo do que sinto. Em se tratando de sentimentos, começo tentando escrever, quando julgo que devo, mas termino abandonando a ideia e preferindo o telefone ou a conversa pessoal.
O motivo dessa recusa, agora vejo com clareza, está no meu pavor de cair naquilo que chamo o limbo dos escritores. Na minha imaginação, esse lugar terrível é povoado pelas palavras escritas e não sentidas. Estão lá todas as declarações de amor, todas as crises existenciais e todas as gargalhadas e demais sentimentos que nunca passaram de palavras arranjadas, sem qualquer carga pessoal que funcione como âncora e as impeça de flutuar ao sabor das ondas por falta de peso e conteúdo.
As palavras sempre me pareceram ao mesmo tempo encantadoras e traiçoeiras. Sinto-me encantado quando me vejo nelas. E me julgo traído sempre que não reconheço nada de mim naquilo que coloco no papel ou na tela do computador. E isso ocorre com frequência, o que me obriga a fazer longas revisões de detalhes, até que eu consiga enxergar pelo menos centelhas de mim em frases, expressões e palavras, como se elas fossem uma janela sem vidraça em que posso não só ver a paisagem, mas também sentir seu cheiro trazido pelo vento.
Mas nem sempre percebo de imediato quando uma palavra me trai. Para tentar identificar a traição, fico atento às minhas reações corporais. Diante da palavra "indignação", por exemplo, é indispensável que meu corpo tenha uma leve contração. Para "saudade", o teste de veracidade é um incômodo agudo no peito. Se o termo for "solidão", o sinal seguro de que é verdadeiro está no meu olhar, que foge para a frente e se fixa em algum ponto do horizonte, como se tentasse enxergar para além das montanhas.
Escrever, para mim, tem algo de uma experiência gratificante e, ao mesmo tempo, desgastante. Não é raro que, diante de certas palavras, meu coração ameace sair pela boca, tenha calafrios ou comece a sentir calor. Não admira que eu tenha escrito até hoje tão poucas linhas que falem de meus sentimentos. Venho agindo assim, agora eu sei, por instinto de defesa. Afinal, eu nunca sei até quando meu coração vai se manter de pé em meio às ondas de sentimentos que eu insito em procurar em cada parágrafo saído das minhas mãos.
1 comentários:
Que show de texto, Márcio! Afora o mérito - que é tema de divã -, achei espetacular a construção da ideia e da estrutura do texto. Putz, como eu queria ter a sua capacidade de escrever com tamanha clareza e naturalidade!Abraço!
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