O dever incontornável de sonhar

Tenho dividido o tempo de leitura de que disponho em duas metades rigorosamente iguais. Uma delas é dedicada aos cientistas, historiadores, jornalistas e escritores que me dizem como o mundo é. A outra metade fica com os filósofos, poetas, romancistas e autores que me fazem sonhar, isto é, que me dizem como o mundo poderia ser.

No entanto, à medida que o tempo passa, começo a sentir que precisarei dedicar cada vez mais tempo ao grupo dos estimuladores de sonho, ainda que isso me obrigue a encurtar o tempo que reservo à leitura dos autores preocupados em descrever a realidade. Aliás, quanto mais contemplo a realidade, tanto mais me convenço de que precisamos mais daqueles que nos ensinam a sonhar do que daqueles que fazem retratos do real com o máximo possível de objetividade.

Será isso um escapismo? É possível que minhas palavras sejam lidas assim. Mas não creio que essa leitura seja a mais próxima do que de fato sinto. O que sinto nada tem a ver com um vago anseio pela terra distante dos sonhos para o qual partem aqueles que não suportam olhar de frente para o mundo à sua volta. Não, meu sentimento é diferente. O que sinto é que as crianças exploradas como mão-de-obra gostariam que muitas pessoas de bem se juntassem para sonhar um mundo em que elas pudessem brincar um pouco no seu tempo livre; o que sinto é que as mulheres agredidas gostariam que todos sonhássemos um mundo em que a agressão não fosse banalizada e sim punida com mais severidade e evitada por um esforço de mudança cultural; o que sinto é que os portadores de necessidades especiais esperam que sonhemos um mundo em que a diferença será vista com mais respeito.

Mas não encontro estímulo para esses sonhos de um outro mundo na ciência e em outros discursos sobre a realidade, por mais que eu os valorize. Esse outro mundo pertence ao campo dos sonhos, mais precisamente àquela parte onde estão os sonhos que nos incomodam no fundo da consciência até que arregacemos as mangas para tentar torná-los realidade. Por isso acredito cada vez mais na poesia e na ficção. Ao abrir as portas do meu coração para o desejo de que se torne real o que ainda é apenas imaginação, poetas e ficcionistas me ensinam que sonhar, afinal, já deixou de ser um direito. Cada vez mais, sonhar é um dever. Um dever incontornável.