Os ipês, agora em plena florada, despertaram a minha memória. O amarelo vivo de algumas das árvores que tenho visto todos os dias pelo caminho me lembrou do catecismo no antigo colégio das madres escolápias. Eu tinha uns 8 ou 9 anos e tentava fugir das aulas com a mesma rapidez com que o diabo provavelmente foge da cruz, se é que ele ainda faz isso. O futebol e outros jogos, uma espécie de prêmio para quem ficava quieto durante as explicações de dogmas e verdades fundamentais da fé, nunca me seduziram, pelo fato de que eu sempre fui um péssimo jogador.
Mas não foi só a falta de jeito com a bola que me levou a desistir de aprender a doutrina católica. O problema era mais embaixo, e os ipês têm uma boa parte da culpa. Apaixonado desde criança pelas árvores, ao ponto de passar horas olhando as que havia pelo caminho, eu me convenci de que as floradas são um luxo da natureza. E esse luxo sempre me pareceu ainda mais digno de valor pelo fato de que uma flor nasce uma única vez e só permanece viva por um brevíssimo tempo.
Saber que o próximo ano sempre traz nova florada nunca conseguiu eliminar da minha mente a idéia de que as flores vindouras serão outras. Nunca encontrei motivos suficientemente fortes para acreditar que não devesse me angustiar com a brevidade da vida de cada flor ou cada ser pelo fato de existir, segundo crêem alguns, um plano espiritual em que a minha alma possa conservar eternamente as lembranças deste mundo. O oposto me pareceu sempre mais plausível: mesmo quem crê num Deus Criador e num plano espiritual não pode negar a evidência de que Ele não nos deixou nenhum indício de que tal plano seja superior a este em que agora estamos. Dizendo com outras palavras, penso que Deus não nos deixou indício algum de que a existência de um mundo espiritual deva nos levar a dar menos valor a este mundo de sensações físicas. Pelo contrário: Ele quis nos lembrar, parece-me, que é sobre a terra que se desenrola o drama humano, razão pela qual as doutrinas enfatizam valores como a caridade, que são formas de tentarmos mudar as coisas nesta vida, não em outra.
Pensando nisso enquanto olhava pela janela da sala de catecismo, eu ficava surdo para dogmas como a vida eterna que nos foi prometida no caso de seguirmos os conselhos da Igreja, legítima intérprete do Reino de Deus aqui na Terra, e só ouvia a minha voz interior me lembrando que a visão daquelas flores era uma dádiva que deveria ser aproveitada ao máximo antes de elas se fundirem de novo à matéria da natureza.
A consciência de que a existência humana na terra, vista pela escala da natureza, é tão efêmera quanto a daquelas flores, provocou em mim uma ponta de angústia, que me acompanha ainda hoje. Ao mesmo tempo, porém, ela me despertou para o valor inestimável de cada segundo, que deve ser vivido do modo mais intenso possível, justamente por ser irrepetível. Essa mesma consciência de brevidade fez nascer em mim um sentido profundo de gratidão por este curto instante a que chamamos "nossa vida", durante o qual nos foi dado, como flores de ipê, despontarmos na grande árvore da humanidade até o momento de voltarmos ao chão como adubo da terra.
Pensar que cessamos é íngreme, como bem lembrou o poeta. Mas, para o garoto que eu era ao entrar no catecismo, foi também revelador. O sentimento de finitude desta existência, associado à descrença em dogmas que dirigem o sentimento e a razão para lugares pré-determinados, fez nascer em mim a idéia de que cada vida humana é uma obra pessoal, a ser construída sem fórmulas prontas e imutáveis. Se não há fórmulas nem caminhos pré-determinados, e sim uma obra em progresso na qual pode entrar a imaginação a serviço da escolha das melhores alternativas para o aperfeiçoamento, é muito maior a responsabilidade que temos para conosco e com os outros em cada segundo de vida.
Essa visão de mundo, surgida nas tardes de sábado que passei entre as paredes do velho e solene colégio das madres escolápias, me leva a crer que neste mundo somos nós, seres humanos finitos e limitados, mas também criativos e capazes de marcar seu lugar na história de um modo produtivo, os únicos responsáveis por toda desonra e toda desventura, mas também por toda honra e toda a glória. Agora, e para sempre.
1 comentários:
É uma oração. Também estudei em colégio de freiras e lembro das aulas de Educaçção Religiosa. Deus era sempre visto como o vingador e eu não gostava dessa ideia. Hoje penso diferente, embora traga coisas de minha infância e tudo isso não me larga. Eu costumava acreditar que morte era coisa que só acontecia na casa ao lado. Nunca pensei que minha vida fosse limitada. Temos tempo contado e perfeito ler seu texto e chegar à conclusão de que a forma como se vive pode mudar o curso das coisas. A gente pode ter glórias ou a lama. E João Pessoa é cheia de ipês. Passarei a observar mais.
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