quarta-feira, 20 de maio de 2009

Variações estilísticas sobre as filas de banco

Das vantagens de expiar culpas no sistema capitalista
O bom Deus, julgando talvez que a minha alma pecadora deve começar a expiar as culpas acumuladas no primeiro quadrimestre de 2009, sem a incidência de juros e correção monetária, permitiu que eu perdesse esta semana uma preciosa hora de vida na fila de espera por atendimento numa agência bancária. Esse desperdício de vida teria sido, em princípio, de 30 minutos, não fosse o equívoco de uma estagiária que me conduziu à fila errada.
Só descobri o erro quando me sentei diante de uma funcionária que me perguntou, com um sorriso institucional, quanto eu queria de empréstimo. Reuni ânimo para dizer a ela, de modo igualmente sorridente, que, a despeito de minha franciscana pobreza e da evangélica disposição do banco de ajudar os pobres, não queria dinheiro, apenas assinar documentos de cadastro que o gerente, sabe-se lá por que razão, não permitiu que minha secretária fosse buscar.
Também tive vontade de recomendar à atendente, bem como a seu zeloso gerente e à estagiária, que se dirigissem, para uma visita sentimental, ao lugar em que suas amáveis progenitoras lhes deram a luz. Mas me contive e voltei para a fila. Nos 30 minutos seguintes, encontrei-me com a minha dor de cabeça. Mas um homem prevenido, ainda que pisado pelo sistema financeiro, vale por dois: nunca vou ao banco sem a Neosaldina.
Tomei o comprimido sem água, com a impressão de que, se saísse do lugar, não conseguiria retomá-lo. Dez minutos depois, veio-me uma onda de gratidão àquela amiga fiel e eficaz no combate à enxaqueca. A criança dentro de mim teve a idéia de rascunhar o episódio em vários estilos. O resultado são as variações seguintes, um monte de genuínas abobrinhas que teve, pelo menos, o mérito de me aliviar do tédio da espera.


***

O caso, segundo o Padre Antônio Vieira
O episódio de sofrimento que hoje se prega, para edificação dos que não compreendem o humano padecer nas filas de banco, teve na dignidade bíblica de Jó o seu modelo ímpar. E o que nos diz o texto sagrado? Diz que Deus Pai, ao nos dar sede e enxaqueca, de duas possibilidade se pode servir. Na primeira, quer fazer com que expiemos nossa culpa. Na segunda, intenta fazer-nos pensar sobre ela. Aquela prepara o campo. Esta faz a semeadura. Então vos digo, com o Antigo Testamento e a Neosaldina por garantia: não é vão o sofrimento bancário.

O caso, segundo Machado de Assis
Fica sabendo, leitor amigo, que há nas filas do atendimento bancário razões que a nossa razão desconhece. Para tua ciência e a de teus descendentes — que hás de tê-los, posto que a enxaqueca não te poderá impedi-lo, muito menos a pobreza, que, de resto, são males remediáveis —, digo-te que aquele equívoco na fila custou-me meia hora de existência e um século de penúrias. Premido pela seca e temeroso de perder o lugar, vi-me de repente um Hamlet redivivo no Capitalismo: tomar ou não tomar água? Eis a questão.

O caso, segundo Drummond
Tinha uma fila de banco no meu caminho. No meu caminho tinha uma fila de banco. O capitalismo ama os bancos, que ama as agências lotadas, cujos gerentes amam os clientes em penúria na busca de empréstimos. Mas eu não amo ninguém e não quero empréstimos. Sou um gauche na vida que só quer amar as coisas lindas de Minas, ainda que findas. Mas Minas não há mais. Minas, até tu, és agora fila de banco, senha de atendimento, tédio financeiro. E agora? A dor de cabeça chegou, o comprimido entalou, a fila engrossou. E agora?

O caso, segundo Guimarães Rosa
No largo da praça transita o Capital. Em espécie. Tangido pelo gerente e acurralado no cofre da agência. Capim financeiro para bolsos vazios. Cantilena de fila. Boquirrotos à espera de ervanário. Banquirrotos empapando juros. Na trilha errada, o fim do caminho é a oferta de notas. Tentação do abismo de juros gritando como siriema. Enxaquecamento como patada de boi na idéia. Na boca, sede de grotão sem nascente. Neolsaldinar para aguentar. A seco. Tanger a vontade de esganar para o fundo do mato de dentro. O pasto sem arame e sem mourões do capitalismo, ora, pois.

O caso, segundo Clarice Lispector
De repente, seca, abrupta, uma voragem interior que me consome. Do fundo do eu, autoritária, grita a dor lancinante de um reclame até então recôndito. Neosaldina, Neosaldina. A idéia me assalta, me abraça, me acolhe como a mãe segura o bebê. Ou eu me abraço a ela na querência de não afundar? Afundo. Sem água. Visão turva. Por que uma hora de vida doada assim, com sangue, ao sistema financeiro? Quanto me custa, em dor existencial, essa fila errada, desamada, sem cor? A mulher do lado verá a minha sede? Minha enxaqueca está gritando pela minha face translúcida aos olhos da atendente?

O caso, segundo Jorge Amado
Uma hora de vida. E por causa de quem? De um grupo de sacanas pervertidos, travestidos de gente séria no despudorado carnaval capitalista. O segurança, com certeza um pedófilo. Fica olhando as criancinhas com olhar asqueroso. A atendente, com os lábios pintados e úmidos, não me engana. Cadela. É do tipo que gosta de apanhar na cama, do tipo que geme e grita e goza levando surra. E o gerente? Um corno. Com aquele ar afeminado ao atender a esposa no telefone enquanto rabisca pedacinhos de papel, é do tipo que leva chifre. É pouco e bom. Canalhas filhos da puta. Não passam disso.

6 comentários:

Deise disse...

Olá, obrigada pela visita, seu blog tbm é interessantissimo, visitarei mais vezes,
Abraços

Paulo disse...

Muito bom Márcio.
Nossa dificuldade é comentar nos estilos escolhidos.

Abraço

FOXX disse...

kkkkkkkkkkkk
vc tem um olhar mto bom!
mto bom mesmo!

e obrigado pelos elogios ao Espartanos
volte sempre

Letícia disse...

Márcio,

Por motivo de falta de palavras diante do que li, me resumo a dizer "Genial". E você sabe que está perfeito.

E haja originalidade.
Eu fico até feliz quando leio textos assim.

Vladimir Golombek disse...

Que inspiração inspiradá! Andei meu ausente de blogs e de mim mesmo, mas prometo que agora retornarei, especialmente ao seu blog.

Biba disse...

Gostaria de comentar como Clarice, mas hoje não me sinto Lispector. Assim deixo meu beijo.
Amei o post.
Carpe Diem!!!