segunda-feira, 18 de maio de 2009

Você se considera original?

Uma reflexão sobre quebra-cabeças e ipês amarelos em matas verdes
A maior parte de nós tem mais dificuldades do que é necessário para distinguir a originalidade da cópia. No entanto, em literatura, arte, jornalismo, política, educação, ciência ou qualquer outra área do conhecimento, basta uma rápida pesquisa histórica para nos mostrar quem é original e quem só está repetindo ou vulgarizando fórmulas existentes. Assim, por exemplo, se alguém tiver a curiosidade de pesquisar um pouco da história da poesia em língua portuguesa, chegará logo à situação de poder distinguir com segurança quem é original e quem faz apenas cópias de modelos já existentes.
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Mas o que, afinal, é a originalidade? A pergunta é filosófica e, por isso mesmo, passível de ser discutida de um modo muito mais amplo e profundo do que seria desejável para esta reflexão feita ao correr da pena. De qualquer modo, uma bússola de orientação é fornecida pelo dicionário, que define “originalidade” como a qualidade do que é original e diz ser "original" o que não ocorreu antes.
Desnecessário dizer que em literatura e nas demais áreas, em especial na ciência, essa definição do que é original suscita vários problemas. Não é razoável negar a originalidade de alguém que retomou um trabalho e o desenvolveu para além de seus marcos iniciais. Em ciência, é por desenvolvimentos sucessivos que se obtém o progresso, que representa, quase sempre, o produto de um esforço coletivo. Também em literatura o desenvolvimento sucessivo é, em parte, cabível, embora a dimensão coletiva nem sempre esteja presente. A estética realista foi cunhada no século XIX, o que não nos impede de considerar originais os romancistas realistas dos séculos XX e XXI, na medida em que eles alargaram e aprofundaram a noção de realismo na literatura. Mesmo os fundadores de tradição aos quais estamos dispostos a conceder um nível de originalidade elevado devem algo a seus predecessores. Quando inaugurou o realismo literário entre nós, com o seu "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1888), Machado de Assis já havia lido os realistas europeus, o que não lhe diminui o mérito.
Existem, claro, a invenção e a inovação puras ou quase puras. Marcel Proust, na França, e Virginia Woolf, na Inglaterra, desenvolveram a técnica da narrativa como fluxo de consciência contando com pouquíssimos modelos prévios, o mesmo se podendo afirmar do irlandês James Joyce. Do mesmo modo, e esse é um exemplo mais espantoso, quando Lewis Carroll criou "Alice no País das Maravilhas", deixando de lado o tom moralizante para se abrir ao puro aspecto lúdico da narrativa, praticamente não havia exemplos anteriores de histórias não moralizantes para crianças. Carroll está na galeria dos gênios por conta disso e de outras características efetivamente ímpares.
Mas invenção e inovação puras existem em grau muito menor do que supõe a nossa vã filosofia e não constituem pré-requisito indispensável para que consideremos algo como original. Aliás, invenção e inovação nem sempre são o que julgamos que sejam. De fato, o que se considera muitas vezes como sendo invenção ou inovação é, na prática, o produto de um processo inteligente de combinar as peças disponíveis e formar com elas um desenho até então inexistente. A originalidade absoluta em todos os aspectos de um romance, por exemplo, se é que já ocorreu alguma vez, provavelmente é incompreensível. O que é totalmente novo não chega a ser entendido se não ficar claro para o observador quais são os elementos previamente existentes da realidade em que a novidade se baseia. Novidade é, essencialmente, um conceito relacional, que remete à idéia de mesmice e não pode ser entendido sem referência a ela. É contra o pano de fundo do comum que desponta o incomum, assim como uma árvore de ipê amarelo se destaca na mata verde, mas não se destaca num bosque em que todas as árvores sejam ipês amarelos.
Uma maneira de explicar a originalidade a partir dessa linha de raciocínio consiste em afirmar que ela é a capacidade que alguns criadores demonstram de desenvolver o que existia antes deles ou recombinar peças já conhecidas para formar com elas algo até então desconhecido. (Uma dedução legítima que se pode fazer a partir dessa forma de entender a originalidade é que ela só é acessível àqueles criadores críticos que conhecem bem a história do ramo de atividade ao qual se dedicam, de modo que podem retomar o desenvolvimento de algo a partir do ponto em que outros pararam. Por sua vez, a marca da ingenuidade fica clara quando alguém apresenta sua pretensa originalidade numa determinada área sem referência ao que veio antes. Nesses casos, é grande o risco de se tomar como exclusivo o que é comum a outros criadores).
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Esse modo de tratar a originalidade traz de volta o problema inicial: se a originalidade é, na grande maioria das vezes, um desdobramento ou uma recombinação de peças, como distinguir o limite entre o que é efetivamente original e o que não passa de cópia? É esse o papel desempenhado pela perspectiva histórica. Ao ler a história do romance e se informar sobre as características do gênero e suas várias fases, o leitor curioso, mesmo o leigo, terá condição de dizer com razoável segurança quem acrescentou algo, seja por invenção, inovação ou desenvolvimento e recombinação de peças, e quem apenas vulgarizou o que já havia sido estabelecido como padrão.
Mesmo as vulgarizações feitas com extraordinário talento tendem a perder terreno quando se descobre o que de fato são. Rui Barbosa é citado com frequência como a mais enciclopédica inteligência de seu tempo e um grande orador. E por que sua oratória quase não é discutida pela crítica atual em seus aspectos estéticos, ao contrário do que ocorre com a oratória do Padre Vieira, que é muito mais antigo e, no entanto, muito mais comentado? A resposta é simples: porque, embora bem escrita, a oratória de Rui constitui uma coleção dos chavões do século XIX. Falta-lhe a capacidade de acrescentar algo de diferente ao que retomou do passado. Vista ao microscópio, essa oratória já era antiquada em seu tempo.
Essa maneira de ver a originalidade tem a vantagem de permitir identificar o plágio de si mesmos que muitos autores realizam quando lhes falta a coragem — decisiva nos verdadeiros talentos — de afrontar a própria criação para superá-la continuamente. Essa abordagem também permite ver a caricatura que alguns criadores realizam dos modelos que elegeram e que merece esse nome por ficar aquém da cópia e resultar na diluição dos modelos. Entre os modernos autores de literatura brasileira, por exemplo, a prosa intimista de Clarice Lispector e de Caio Fernando Abreu está entre as mais diluídas. Há uma legião de escrevedores que têm, no fundo, uma vontade incontida de ser Clarice ou Caio Fernando quando crescerem. Mas não vão crescer, pelo menos enquanto não puserem em questão sua pretensa originalidade, que muitas vezes não passa de cópia não percebida como tal.
Um traço chocante da realidade é que ela nem sempre é justa com os criadores originais. Devido ao conservadorismo arraigado na mente humana, que só a poder de esforço e disciplina consegue extirpá-lo, a crítica especializada costuma demorar muito para assimilar, em cada área, as contribuições originais. (Isso ocorre em menor escala na ciência, em razão de sua predisposição a considerar o trabalho conjunto e o desenvolvimento sucessivo, mas ainda é muito significativo em literatura e artes). Uma consequência dessa demora é que os formadores de opinião da mídia tendem a endossar o status quo de cada área, representado por aqueles que vulgarizam o que já existe. Daí que a vulgarização, em quase todos os tempos e lugares, é sempre mais compensadora financeiramente do que a busca da originalidade. Um romancista ou poeta que repita chavões que o gosto médio já consagrou terá muito maior probabilidade de ter sua obra editada e vendida do que outros que buscam desbravar campos até então inexplorados, assumindo o risco de chocar ou causar estranhamento.
Não haverá, então, justiça? A história mostra que existe, mas não quando nós gostaríamos que houvesse. A justiça é feita pelo tempo. Com o decorrer dos anos, os inovadores, ainda que já estejam mortos, são enaltecidos como tais e continuam sempre lembrados pelo que realizaram de concreto, transformando-se sua obra em marcos de sua própria época e referências para as outras. Os vulgarizadores e diluidores, por sua vez, fatalmente desaparecem nas brumas do esquecimento, recolocados pelo tempo no lugar que lhes é devido.

3 comentários:

Letícia disse...

Como sempre, mais um texto seu que entra para a minha galeria de "Abra os Olhos". Antes de qualquer coisa, você é muito bom. Seria facilmente identificado como um Ipê Amarelo.

Essa questão da originalidade está ligada ao conhecimento. Você deixou claro e eu concordo. Para que alguém possa saber se o que faz é novidade ou não, é preciso que saiba de fatos passados. No caso dos escritores, é preciso que se conheça bem outros autores e pesquisar, não apenas para poder exercitar o que se escreve, mas também como um aprendiz literário. Sou do grupo que acredita que algo novo e inédito possa ser feito. Algo diferente de Machado de Assis ou Lewis Carrol. Mas a questão é fazer algo inédito e usar as ferramantas que foram utilizadas por outros para chegar a esse processo de originalidade. Já li Clarice Lispector e vejo muito Caio Fernando Abreu andando por aí, mas tenho fé. Algo será diferente. Alguém escreverá algo distinto. O novo sempre virá. O que fortalece a cópia e a repetição, Márcio, acredito eu, é o que ocorre com times de futebol. Por que mexer num time que está ganhando? Logo, o escrevente estaciona e repete sempre a mesma questão. No entanto, há formas de se repetir coisas sem que precisemos passar pelo mesmo caminho já usado tantas vezes.

Lia Noronha disse...

Marcio: bem interessante esse seu questionamento..num mundo tão repetitivo...ser original...faz a grand ediferença!!!
Abraços carinhosos pra ti.

A Monga e a Executiva disse...

Márcio, retribuindo a visita!!! Seu espaço é muito interessante, se vc permitir, te incluirei na minha lista de blogues favoritos!!! Abraços