quinta-feira, 19 de março de 2009

Rivotril Social Club


O primeiro comprimido a gente nunca esquece
Três noites dormindo mal curvaram meu espírito e levaram-me enfim a aceitar um ingresso para o Rivotril Social Club. Fiz na madrugada de hoje a minha estréia nessa agremiação que, de um extremo ao outro da República, não pára de crescer no ritmo vertiginoso da insônia, já quase transformada em assunto de saúde pública. O primeiro comprimido ficará gravado na memória, pois me proporcionou a primeira noite de sono em que sonhei com o mundo virtual.
No sonho, um tanto opressivo, eu me debatia para editar o perfil que minha página pessoal exibe aos visitantes. Não conseguia fazê-lo por causa de um comitê formado pelos meus leitores habituais. Eram eles, não eu, que redigiam a lista das minhas características, meus gostos e preferências. O comitê deliberava após analisar o que eu havia publicado no mundo virtual, com o direito de esquadrinhar meus textos, comentários e correspondência eletrônica.
Descobri que a fixação do meu perfil e a dos perfis de todos os demais habitantes do mundo virtual era feita a cada três meses após rápidas sessões em que os membros dos comitês deliberavam por maioria. Em cada comitê havia o momento em que o participante, após votar para a fixação do perfil de alguém, saía da mesa e aguardava que os demais votassem o seu próprio perfil, de modo que todos, ao final, julgavam e eram julgados.
Espantado com essa fixação do "eu" feita à revelia dos interessados e, possivelmente, contra suas convicções mais íntimas sobre si mesmos, pedi explicações e recebi, em resposta, a informação de que o meu espanto não se justificava de modo algum. Na era do virtual, explicaram-me, tudo é editável, modificável, transitório. O tempo dos antigos livros de papel construídos com imutáveis folhas impressas havia dado lugar à Era da Edição.
Também havia passado o tempo de pensar que alguém era autor do texto do seu "eu", como se o significado dessa palavra de duas letras não fosse sempre o resultado de uma leitura e como se a leitura não fosse uma interpretação variável, dependente do prisma e do momento de quem lê. Quis invocar em minha defesa a palavra "identidade", mas nem tive tempo de esboçá-la. A fixação do meu perfil havia terminado. Era hora de eu ir fixar o perfil de meus leitores.
Para meu alívio, não cheguei a fixar o perfil de ninguém. Acordei nesse ponto do sonho, precisamente às 6 e 23 da manhã, já atrasado para o trabalho. Antes de pular da cama e abrir a janela do quarto, senti a boca ligeiramente amarga e a cabeça povoada por uma dorzinha tranquila, dessas que chegam sem pressa e prometem ficar o dia inteiro nos fazendo companhia. Nada que um copo de laranjada com Neosaldina não resolva.

4 comentários:

mariza lourenço disse...

nem George Orwell poderia imaginar trama tão opressiva quanto essa, mas que faz sentido se pensarmos o mundo virtual como um espaço onde afloram multiplas personas, e nem todas muito agradáveis.
não me debato com questões psicológias, nem poderia fazê-lo, sou bastante limitada, inclusive, nesse sentido, mas, muitas vezes me pego pensando nesse mundo onde, por motivo de trabalho, sou obrigada a passar boa parte do meu dia.
vá por mim, meu amigo, escutar grilo cantando é muito melhor.
boa crônica, Márcio, e eu a elogiaria mais profusamente e com uma boa dose de humor, se não sentisse que ao amigo anda faltando o descanso necessário.

um abraço.

mariza lourenço disse...

errata: onde está escrito psicológias, leia psicológicas.

Letícia disse...

Li seu texto ontem e por incrível coincidência, recebi o telefonema de uma amiga e conversamos e ela sofre de insônia e enxaqueca. E está no mesmo clube que você. Rivotril para dormir e Neosaldina sempre. Você não é o único.

Você pode falar até a respeito de naves espaciais ou sei lá o que mais. Eu leio e existe algo tão comum e real nos seus textos. Algo que transmite não apenas a sua vida. É como se fosse um inventário. Você faz registro de um tempo, do comportamento, de como todo nós vivemos. Você relata um sonho (ou pesadelo) e eu vejo a paranóia que persegue a todos. Essa nossa ideia de que todos nos observam e, certamente, vivemos todos olhando uns para os outros. Observando, respirando e fazendo nossas cópias.

É muito bom ler você, Márcio. Me sinto igual.

Luciana F. disse...

sim, rivotril salva...até já tinha lhe falado....um rivotrilzinho de quando em vez é o que há...mas tem que ser uma dose levinha...0,25 sublingual...uma maravilha...não dá ressaca nem trips malucas como essa sua aí...heheheh...abração