sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Um dia de craque

Meu amigo Miguel, um mineiro legítimo que há anos vive no litoral capixaba, estará por aqui dentro de algumas horas. Virá às montanhas de Minas para desfrutar de merecidíssimas férias, pois passou de ano antes mesmo das provas finais, não fez bagunça no quarto, almoçou nas horas certas, tomou banho sem fazer hora e manteve-se obediente às regras da boa convivência social.
A chegada de Miguel é sempre um acontecimento esportivo. Ela significa que as terras mineiras terão o orgulho de hospedar, até o carnaval, um especialista em futebol capaz de discorrer com segurança sobre os campeonatos nacionais e internacionais, com análises precisas sobre o desempenho individual de jogadores e a produtividade das equipes. Sem esquecer que o próprio Miguel é praticante entusiasmado do futebol e atualmente mostra seu brihante talento no Fluminense, de Vila Velha.
Diante da correção e clareza das análises feitas por Miguel, confirmada inclusive por comentaristas de rádio e cronistas esportivos locais que respeito, meu papel é o de plateia. Sem entender nada de futebol, a não ser que se deve correr atrás da bola e chutá-la para o gol, cabe-me o honroso papel de concordar com Miguel e aplaudi-lo por sua memória prodigiosa e sua capacidade de fazer prognósticos futebolísticos que se mostram corretos na grande maioria das vezes.
Mas não pensem o leitor e a leitora que foi sempre assim. Já tive meus momentos de glória futebolística, não como analista, mas como jogador. Sim, senhores: eu também já corri atrás da bola e experimentei, ainda que por uma única vez, a indescritível sensação de fazer um gol de placa. Lembro-me bem da partida que marcou minha estreia e, infelizmente, também a minha despedida do futebol. Sem exagero, ainda hoje penso que, se tivesse insistido na prática, teria chegado a jogador profissional.
Meu amigo Miguel não concorda com esse pensamento. Aliás, toda vez que vem a Minas ele me pede um novo relato daquela partida, como se desejasse analisar seus detalhes. Ao final de cada relato, Miguel, que tem a virtude de não mentir, diz educadamente que, a julgar pelo meu desempenho, não está muito certo de que eu poderia ter-me tornado um craque. Discordo da avaliação de Miguel, por achar que ele se prende a detalhes, mas isso em nada abala nossa sólida amizade, que fará 10 anos pelo fim de abril.
Para mim, o que importa é a essência do meu desempenho naquele dia, e não admito que pairem dúvidas a respeito. Para começo de conversa, eu já me senti vitorioso ao entrar em campo. Até então, eu nunca participara dos jogos promovidos pelos alunos da turma do catecismo, por um motivo simples: esses jogos eram uma espécie de incentivo para quem frequentasse as aulas, e eu, com todo o respeito devido à Santa Madre Igreja, odiava frequentá-las e ficar repetindo a cartilha sobre as verdades fundamentais da fé.
Mas naquele dia, julgando que precisava incrementar meu círculo social (eu tinha 11 anos e poucos amigos), decidi comparecer à aula e, depois dela, aceitei um convite para a partida, que seria disputada na quadra do velho colégio das freiras Escolápias, sem uniformes e chuteiras, mas com muita garra. Buscando a popularidade, achei que deveria entrar em campo com toda a energia. Quando o árbitro — representado pela jovem senhorita que auxiliava a professora de catecismo — deu o apito inicial, senti que aquele seria o meu dia.
Saí correndo pela quadra e repetindo para mim mesmo que aquilo, afinal, era coisa simples: bastaria correr com a bola e levá-la ao gol sem colocar-lhe as mãos. Depois de uns 15 minutos de jogo, diante dos rostos um tanto admirados da plateia, percebi que eu estava no caminho certo e redobrei esforços. O ponto alto da minha atuação em campo ocorreu algum tempo depois, ali pelos 10 minutos do segundo tempo. Era uma dividida, ou seja, uma ocasião em que eu teria de disputar a bola com outros jogadores no corpo a corpo.
Pois disputei. E venci! Aqueles segundos continuam vivos na minha memória: primeiro, resisti a um esbarrão que um jogador desavisado me dera. (Na verdade, tive mesmo a impressão de que ele estava parado no campo olhando-me, sem acreditar que eu era capaz de fazer o que estava fazendo). Passei depois por dois outros jogadores, mais altos do que eu. Ficaram ambos parados com a expressão de quem vira um cometa cruzando a quadra, a mesma expressão, aliás, da senhorita que fazia as vezes de juiz da partida.
Tomei o espanto deles como uma comprovação de que eu tinha talento. Eu ainda não tinha ouvido falar de Barak Obama, mas intuitivamente trazia na mente uma variante da frase predileta de campanha do futuro presidente dos Estados Unidos: Sim, eu posso. E foi com esse bordão na cabeça que fiquei, enfim, de cara para o gol. Estreante no mundo do futebol, achei que não deveria chutar logo. Preferi fazer charme e até ensaiei uma cara de matador, dando a entender que iria chutar com força. Nesse ponto, parte da plateia, dividida em acirrada rivalidade, entrou em delírio: "Vai, vai, cara!", gritavam-me entre risos.
E eu fui. Julgando-me o próprio Pelé em miniatura, parti com toda a minha força em direção às traves, dominando a bola e olhando o rosto desolado do goleiro, que balançava a cabeça de um lado para o outro em sinal de reprovação. Sua expressão desolada quase me fez sentir pena dele. Fui salvo desse sentimento por uma frase pouco educada que ele me dirigiu. Acho que foi algo como "Deixa de onda, seu palhaço, e joga bola". Um ímpeto vingador se apossou de mim. E chutei.
Fechando os olhos, sou capaz de ver a curvatura da bola, que ficou registrada em minha memória como se tivesse sido filmada em câmera lenta. Foi lindo: a pequena pelota de couro ganhou impulso ao contato do meu pé, rodopiou um pouco e foi bater forte no fundo da rede. O goleiro nem se mexeu. Explodi de alegria. Saí gritando, vibrando, e parte da plateia foi à loucura. Ainda não existia a expressão (estávamos em 1983), mas, se ela existisse, as testemunhas oculares daquele feito a teriam usado: "Esse é o cara".
Sim, eu era o cara. E as caras fechadas de alguns amigos me mostravam que a vaidade ferida os impedia de reconhecer isso. Mas não era preciso reconhecimento. Eu estava ali, depois de um golaço que ninguém podia negar. Alguém pediu um intervalo à senhorita juíza da partida, e eu me aproximei para tomar água de torneira e saborear a refrescante sensação que os comentários sobre o meu gol iriam trazer-me. Ouvi apenas um, vindo de um dos meus melhores amigos, mas foi o suficiente: "Ô professora, tira esse maluquinho daqui, que ele está avacalhando o jogo".
Gastei uns 17 segundos, se não me engano, para entender o que havia ocorrido: pela primeira vez na minha vida, eu estava sendo vítima da inveja humana, sentimento terrível que impede as pessoas de reconhecerem o mérito alheio. Mas não permiti que ninguém diminuísse minha alegria com seu comportamento invejoso. Eu tinha feito um golaço, e ponto final. O fato de ter sido um gol contra não passa de um detalhe.

4 comentários:

Maria Clara dos Santos Batista disse...

Sinto muito, mais terei que discordar em um ponto: o Miguelzinho ainda faz hora ao ir para o banho!
(rs) Abraços!

Letícia disse...

Márcio,

Você pode até ser jornalista - como diz lá no seu perfil - mas não nega que é professor também. A gente conhece um professor quando ele ressalta coisas assim como vc fez.

E sobre o Revolver. Estou ouvindo agora. Sempre ouvi e é um dos meus favoritos. Tomorrow Never Knows é a Música. Mas do disco inteiro, repito mil vezes "For No One". E sempre ouvi os Beatles desde criança. E não deixam de ser Beat também.

E li On the Road há 2 anos e estou reprisando. Faço isso sempre. Leio e leio de novo. Sou assim com filmes tb.

E congratulations sempre é bom de se ouvir.

E valeu por aparecer de vez em quando.

Um abraço.

mariza lourenço disse...

Márcio,

contra ou a favor, não importa: você é o cara! o Miguel, ainda que possa estar certo em suas considerações acerca da sua condição de craque dos gramados, deve ter um orgulho imenso desse pai que emociona tanto. feliz dele por tê-lo. feliz de você por amá-lo tanto.

sobre as minhas estrelas:
eu e mamãe costumamos procurá-las todas as noites e ela, invariavelmente, me faz enxergar no céu tudo aquilo que eu, por incapacidade, não consigo enxergar por conta própria. bendita seja.

um beijo cheio de carinho pra você e pro Miguel.

Anônimo disse...

Mariza Lourenço mandou um beijo cheio de carinho para você e com um belo boquete, que é a sua especialidade. Coma logo essa vaca, essa puta social; seu nome estará em bocas de madames na web se não o fizer, babacão!

Ela é doente, tarada e namora um corno do Rio de Janeiro. Coma logo!

Olha só: ela é um fodão!