terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Navegar é preciso: Suttana e a arte de evitar os perigos do "eu"

são muitos os riscos a que se expõem os que se aventuram no mar da poesia. O maior deles, verdadeiro Adamastor da Lírica a vergastar a nau dos arrebatados, é o subjetivismo menor. Por essa expressão significo aquele extravasamento do "eu" que, incapaz de resistir aos apelos da musa ou do mundo, perde-se nos enlevos do enamoramento ou da realidade e não consegue atingir a marca da grande lírica, que consiste em transcender a individualidade para encontrar a humanidade inteira em cada sentimento individual.
Não há caminhos fáceis para evitar o subjetivismo menor, seja na poesia de enamoramento, em que o "eu" se coloca diante do ser amado, seja na de reflexão, em que o "eu", posicionando-se frente ao mundo, tematiza algum aspecto de sua situação existencial. Assim, a poesia focada no enamoramento, na medida em que constitui longa tradição na lírica ocidental, exige do poeta talento e experiência desenvolvidos o suficiente para produzir obra significativa, sob pena de ele ser engolido por formas já consagradas sem nada acrescentar-lhes de pessoal.
Não é mais fácil o caminho para evitar o subjetivismo menor a partir da poesia do "eu" frente ao mundo. Nesse caso, o problema está nas possibilidades concedidas ao autor, as quais, de tão vastas, podem desnortear. Foi este segundo desafio, principalmente, que Renato Suttana decidiu enfrentar. Prosador, tradutor e ensaísta, além de professor universitário, Suttana, que não é iniciante, apesar de jovem, oferece ao leitor uma poética em que prevalece um "eu" frente ao mundo esboçado de formas as mais variadas, tendo todas elas em comum uma contenção que permite ao autor equilibrar razão e emoção na estruturação de seus poemas.
Um dos traços que comprova a vocação para o equilíbrio em Suttana é a familiaridade com sonetos, forma que se presta à exploração simultânea da musicalidade e da dança das ideias dentro de um arcabouço definido. Alguns dos sonetos de Suttana soam refletidamente naturais, como ocorre com os bons poetas que se dedicam a essa forma. Veja-se este, com um jogo de raciocínio (Ezra Pound o chamaria Logopeia) que remete às divagações de Pessoa-Ele-Mesmo:

Se me desdobro

Se me desdobro, vão, na noite escura
dos passos em que – cego – me desdobro,
se após haver tombado me recobro,
recuperando o fogo que em mim dura,

no qual forjo, sem medo ou amargura
(se me disperso em duplo, se me dobro,
se me triplico e, ao fim da conta, sobro),
o ricto-esgar da máscara futura,

caio sempre em mim mesmo, novamente
convertido naquele de que tenho
notícia a cada instante diferente:

e que é como uma treva em que me embrenho
(eu, que da manhã clara não desisto)
e em que não sei quem sou, se sou, se existo.




A intertextualidade em Suttana consegue trabalhar referências de outras épocas e desvelar-lhes uma realidade que também pode ser a do presente e a de todas as épocas, na medida em que está no âmago do ser humano. É o que acontece com essa bela citação indireta do mito clássico de Ícaro.

Asas

Que fazer desta cera, destas asas,
deste desejo de multiplicar
que me leva ao perigo, a me lançar
num vôo temerário sobre as casas?

Devo esquecer o prêmio, devo arder
para aquém das feridas da ambição,
saciado só de que haja o baixo e o chão,
onde é mais fácil desistir de ser?

Devo me contentar com o que me chega
do dia como tal – azul e duro,
sem vertigens do sol para quem nega;

para quem não procura senão isto,
uma nesga de incerto e de imprevisto
que se oculte nas dobras do futuro?



Não menos surpreendente é a metalinguagem em Suttana, como nestes versos que traduzem de modo admirável o drama do criador que deseja exprimir-se em palavras para sair do isolamento que o oprime. É inteligente e sensível metalírica, situada no mesmo nível da que foi feita por um Leminski:

O Afogado

Um afogado quer
agarrar-se a uma palavra
para não submergir.

Como pode
uma palavra – osso do nada –
salvar alguém?

Um afogado quer
nadar por cima dos dias,
nadar por cima

de suas esperanças
(nadar por cima do silêncio)
agarrando-se a uma palavra

para não afundar (?).
..................................................
E no entanto afundar o envolve
por todos os lados.




Nos textos mais longos, Suttana não se rende à colagem de metáforas sem conexão semântica que é tão comum em autores de sua safra e, por que não dizê-lo, tão empobrecedora. Há sentido em tudo o que diz porque sua lírica não permite que as ideias se desamarrem, unidas que estão por um fio de raciocínio que se mantém íntegro, inclusive em suas "canções", algumas delas vazadas ao modo requintado de Drummond, que une naturalidade e alta densidade lírica.

Canção

Coração magoado,
é justo que esperes.
Se foi bom o dia
e te trouxe o fruto
(ou se deu errado) –
não te desesperes.

Coração aflito,
que a noite gelou.
Se é espessa de sol,
a manhã, e morna
(e o sonho é finito) –
prepara o teu vôo.

Coração aceso
de uma estranha chama.
Bate compassado,
pois o vento é breve;
se, intenso e surpreso,
o esforço te chama,

não te desesperes:
bate decidido. –
Na manhã tão lúcida,
tão de primavera,
é justo que esperes,
que faças sentido.




Para fechar, há que falar da capacidade de Suttana de defender suas opiniões com um renovado espírito lírico, que diz recusa tanto o intelectualismo quanto o sentimentalismo e que não tem o receito de se sentir dimunuído por ser legível (temor que, penso, acomete muitos jovens poetas promissores, cedo mergulhados numa apressada leitura da recomendação — ainda em voga em alguns ambientes críticos, mas já felizmente minoritária — de buscar o "difícil" em poesia). As qualidades acima, apenas algumas entre as muitas que o autor demonstra, bastam para sítuá-lo entre as leituras obrigatórias da web literária brasileira. Seu talento, incontestavelmente brilhante, desdobra-se e, com asas que lhe permitem tanto atingir o intangível quanto oferecer um bálsamo aos corações magoados.


No texto abaixo, um de meus prediletos entre os que foram disponibilizados pelo autor na web, encontra-se uma defesa da imaginação e das coisas do espírito, compondo uma bela pedagogia poética do intangível.

Somente o que é irreal

Somente o que é irreal devia interessar-nos,
o que não tem poder de conformar o dia:
o que não tem contorno e cor na luz vazia –
e existe apenas no indeciso, a dissipar-nos.

Somente o que não vem do sol que nos esfria,
que, exato, nos impõe seu jugo, a dispersar-nos,
devia – na intenção – ter o dom de elevar-nos
àquele céu que não existe, mas nos guia.

O que não tem sabor de ser na claridade
e à noite nos assalta, entre as sombras que vêm
brincar ao nosso lado – ermas de imensidade:

o que na confusão do dia é só desdém,
só pensamento que se gasta e que se evade,
como uma porta que se fecha e nos retém.

***


2 comentários:

Fernanda M. Mesquita disse...

Um poema de que gosto
EU
O homem de génio diz: eu sou.
O poderoso afirma: eu posso.
O rico diz: eu tenho.
E o ambicioso: eu quero.
Eu! Eu! Eu!
E afinal
esses que vivem sós,
completamente sós,
quanto dariam para como tu,
ou como eu,
dizerem simplesmente: nós

Fernanda de Castro

Por exemplo este poema de Verginia Vitorino e' para mim um poema que fala da sua tristeza mas consegue atraves das suas palavras inserir sentimentos comuns a todos nos e contem musicalidade

TRISTEZA

Nos dias de tristeza, quando alguém
Nos pergunta, baixinho, o que é que temos,
Às vezes, nem sequer nós respondemos:
Faz-nos mal a pergunta, em vez de bem.

Nos dias dolorosos e supremos,
Sabe-se lá donde a tristeza vem?!...
Calamo-nos. Pedimos que ninguém
Pergunte pelo mal de que sofremos...

Mas, quem é livre de contradições?!
Quem pode ler em nossos corações?!...
Ó mistério, que em toda parte existes...

Pois, haverá desgosto mais profundo
Do que este de não se ter alguém no mundo
Que nos pergunte por que estamos tristes?!

Virgínia Vitorino

Mas por muito que tente analisar a poesia, quase sempre caio neste verso de Fernando Pessoa:
-O poeta é fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Talvez este fingir nao signifique mentir, mas aquele fingir de imaginar, fantasiar, para poder exprimir algum momento mais triste ou contraditorio e poder ter um motivo para escrever. A alma tem esse poder e mais ainda as dos poetas, o de poder construir imagens, historias, cores, para poder dizer ao mundo o que normalmente nao se ve, nao se pensa... funciona como um alerta para aqueles que tiram momentos para a leitura. mas a parte disso, o poeta tem outra vida, onde talvez muitas ideias escritas nao funcionem, mas que serve para o tornar mais sensivel. e e' nesse ponto que a sensibilidade do poeta deve ter a capacidade de atingir a quem le.
Meu deus, tao longo mas eu gosto mesmo de poesia... gostei particularmente do poema do afogado

Esta materia daria para trocarmos ideias durante horas, mesmo talvez tendo algumas ideias diferentes
bom fim de semana
continue dando-nos temas bons como estes
com amizade
fernanda

Anônimo disse...

Excelente poeta esse Renato Suttana!