Eu me contradigo?
Pois muito bem, eu me contradigo,
Sou amplo, contenho multidões.
Walt Whitman
Os feriados são um convite à faxina. Essa ideia me conduziu hoje pela manhã à estante em que guardo livros e papéis dos quais pretendo me desfazer. Encontrei lá, dentro de um mesmo envelope grande de papel, volumes da doutrina moral católica e de algumas obras de Nietzsche. Os livros, já um tanto comidos pelas traças, foram comprados na minha adolescência, quando me surgiu a preocupação de decidir entre a moral cristã e a moral nietzscheana. Eu os coloquei no envelope naquela época e os deixei lá até que conseguisse escolher entre ser cristão ou ser nietzcheano.
As traças tiveram um bom tempo para roer a obra de Nietzsche e os ensaios sobre a moralidade cristã. Eles ficaram longos anos na estante, não por esquecimento, mas por um motivo concreto. O fato é que a minha decisão — melhor seria dizer o meu "dilema" — entre uma e outra alternativa consumiu-me muito mais tempo do que eu supunha necessário. Na verdade, só depois dos 35 anos consegui chegar a uma resposta para a velha indagação dos meus anos de adolescente. Essa foi, possivelmente, a decisão mais difícil que enfrentei, até aqui, em se tratando de opções morais.
Da forma como a entendo, essa decisão é entre uma moral centrada na supremacia da relação do homem com seus semelhantes (a do Cristianismo) e uma moral que proclama a supremacia da busca do indivíduo por crescimento pessoal (a de Nietzsche). O dilema com o qual me debati não é difícil de entender. Penso que não se pode descartar uma moralidade que nos fornece parâmetros e diretrizes para a convivência em sociedade, assim como não se pode deixar de levar em conta uma moralidade que nos ensina a ser fiéis a nós mesmos e buscar a superação contínua de nossos próprios limites.
Minha angústia de escolha se deveu ao fato de eu ter levado a sério demais o debate que opunha Nietzsche ao Cristianismo, proclamando a incompatibilidade entre os princípios defendidos por ambos. Precisei de vários anos para chegar à conclusão de que essa oposição não se sustenta. Um cidadão do século XXI não pode, sem incorrer em misantropia, fechar os olhos à fundamentação da solidariedade encontrada em teorias morais como a cristã. E não pode, sob pena de trair a si mesmo, renunciar à esfera de moralidade individual em que busca o desenvolvimento contínuo sem aceitar limites de crescimento vindos de fora.
Durante algum tempo, premido pela constatação dessa dupla impossibilidade, acalentei a ideia de que se consegue deduzir do Cristianismo um conjunto de referências para a moralidade individual ou, ao contrário, a ideia de que se pode extrair de Nietzsche uma fundamentação sólida para a solidariedade. A meu ver, nenhuma das duas se sustenta. Quando se levam em conta as consequências práticas da aplicação da moralidade cristã e da moralidade nietzscheana, chega-se facilmente à conclusão de que ambas estão, na essência, comprometidas ou com a solidariedade ou com o auto-aperfeiçoamento.
Resolvi esse dilema por adição e não por subtração. Por volta dos 35 anos, já com muitos cabelos brancos e a consciência de finitude que me veio junto com eles, entendi que era preciso, junto com uma moral da solidariedade fraterna, abraçar uma moral que me abrisse as portas do crescimento individual baseado na capacidade contínua de nos reinventarmos. Entre Nietzsche e a moral dos Evangelhos, fiquei com ambos, aquele para a esfere individual e este para a social. Assim, num feriado como este, que convida à faxina, eu, que antes pensava dispensar alguns volumes em benefício de outros, prefiro jogar fora a ideia de que só há um ângulo correto para olhar a vida.
1 comentários:
Nunca se deve olhar a vida só por um lado a vida é além disso, nosso coração tem sede por saber e entender que nó fazemos a diferença aqui, faxina sim da alma, tirar tudo que tem energia ruim e deixar lugar para o amor, paz.
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