The Holden Caulfield Club

Não se passou muito tempo, afinal, até que eu voltasse às salas de aula. Eu pensava em usar o atual período fora do ensino superior para refletir sobre a minha prática docente, mas fui seduzido pela idéia de atuar num projeto social que, por meio de parceria entre o poder público e a iniciativa privada, oferece curso pré-vestibular a pessoas que de outro modo não poderiam custeá-lo. Aceitei o desafio e acho que fiz bem. Convivendo nas últimas semanas com um público em geral mais jovem que o das faculdades, o que inclui adolescentes entre 17 e 20 anos, comecei a me perguntar qual a formação humana que eu gostaria que esses alunos tivessem.

Avesso a idealizações, seja na educação ou fora dela, não consegui achar em nenhum teórico uma resposta que me parecesse convincente para essa pergunta. Fui encontrá-la na literatura, mais precisamente nesse incorrigível sonhador que é Holden Caulfield. Protagonista de "O Apanhador no Campo de Centeio" (The Cactcher in the Rye), clássico da literatura norte-americana contemporânea escrito por J.D. Salinger, Holden Caulfield é um dos personagens mais marcantes do século XX. Sua rebeldia às vezes patética contra o que considera injusto e sua profunda ternura são um símbolo do que há de melhor na juventude. Quando li o romance pela primeira vez, ainda na adolescência, eu me entusiasmei tanto que cheguei a pensar numa espécie de Holden Caulfied Club. Esse clube sui generis, tal como o idealizei, reuniria todos os jovens cuja disposição de espírito misturasse inconformismo e disponibilidade de ajudar a fazer do mundo um lugar melhor. Todos os membros teriam como símbolo um boné vermelho, como o do meu herói.

Num surto de autocrítica um tanto severa, deixei de lado o boné vermelho e abandonei o projeto por considerá-lo uma utopia da imaturidade. Hoje, como professor, penso que foi imaturo abandonar aquele impulso. De qualquer modo, o Holden Caulfied Club permanece ainda hoje em minha mente como uma espécie de padrão. Instintivamente, eu divido os jovens entre aqueles que têm alguma predisposição para ingressar nesse clube de sonhadores inconformados e aqueles que não me parecem dispostos a fazê-lo. Vejo os candidatos ao clube como aqueles que, a exemplo do protagonista de "O Apanhador no Campo de Centeio", têm profunda consciência de suas inseguranças, suas angústias e suas incertezas, mas que possuem, em contrapartida, disposição de fazer algo construtivo e belo de suas vidas e, sobretudo, a saudável capacidade de discordar de alguns aspectos do mundo e sonhar com o dia em que eles poderão ser modificados.

A consciência crítica me diz que um jovem não deixa de ser jovem nem queima etapas no caminho para a maturidade pelo fato de ser mais pragmático e assistir às aulas com o único objetivo de assimilar conteúdos cujo conhecimento terá de provar nos exames vestibulares e em outras instâncias da vida. Acho que esses jovens não estão errados e não traço uma linha divisória entre os sonhadores e os aplicados ou entre os inconformados e os práticos, privilegiando aqueles em detrimento destes. Apenas acho que, quando o sonho e o inconformismo despontam na adolescência, ainda que sejam menos maduros do que nós adultos gostaríamos, não devem ser julgados essencialmente maus. Sonho e inconformismo, afinal de contas, são a matéria-prima da qual são feitas todas as mudanças significativas na vida social. Os adultos reformistas de hoje, assim como os profissionais criativos da atualidade, foram, na grande maioria das vezes, os sonhadores e os inconformados de ontem.

A voz da consciência crítica também me lembra que Holden Caulfield, o adolescente que se perguntava para onde voam os patos e que foi reprovado na escola, a despeito de sua sabedoria intuitiva e de sua bondade natural, é, no fim das contas, um romântico, inclusive no que isso tem de pejorativo. Eu sei que ser um sonhador ou um inconformista num mundo regido pela concorrência tecnocrática do mercado é algo um tanto arriscado. Mas ouso pensar que, se as escolas não disciplinassem com tanto rigor os sonhos dos Holden Caulfield, ainda que houvesse aulas mais barulhentas e mais questionamentos, poderia haver uma forma de canalizar de modo mais construtivo a energia represada da adolescência. E estou certo de que haveria uma vontade de viver explodindo em cada lição.

Além do mais, penso que um pouco de romantismo sonhador e inconformista, no fim das contas, não faz mal nenhum ao nosso mundo. Pelo contrário: acho que estamos precisando de jovens que não só saibam matemática, biologia e história e dominem softwares complicados, como também estejam dispostos, como Holden Caulfield, a atuar como sentinelas do abismo e sinceramente preocupados em proteger aqueles que se acercam dele. Essa disposição de salvar o mundo a partir de um impulso da bondade natural é profundamente ingênua. Mas acredito que ela é também uma das melhores coisas que a nossa civilização tem produzido. Pensando bem, talvez eu deva comprar de novo um boné vermelho.