Arte de Alfredo Volpi
Noites de fogueira
Ter origem rural é marcante na vida de qualquer pessoa que nasceu e vive nos séculos 20 e 21. Nestes tempos em que as metrópoles parecem onipresentes, com milhões de habitantes que nunca viram uma vaca pastando ou uma siriema correndo pelo pasto, a marca dessa origem é tão funda, que chega a causar um sentimento peculiar mesmo quando o mundo rural é evocado e valorizado pela cultura da cidade.
É a origem rural que explica o fato de eu, desde criança, gostar de todas as festas juninas. Gosto delas não com a curiosidade que os metropolitanos dedicam às coisas exóticas que vêm de longe, mas com a sensação de que, pelo menos numa época do ano, hábitos e costumes para mim comuns ganham uma espécie de salvo-conduto para transitar em eventos festivos sem provocar risos ou estranhamento.
Para aqueles que vieram do campo, fogueiras, bandeirolas, danças e canções típicas do período não são uma vitrine folclórica: são só a representação estilizada do modo de ser natural dos avós e bisavós. Minha alma rural está em casa nas festas juninas. No fundo, sempre desconfiei de qualquer festa que, para ser divertida, precise de algo além de um terreiro enfeitado com bandeiras e uma fogueira no centro.
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Minhas memórias juninas estão entrelaçadas à lembrança do primeiro baile de debutantes a que eu, mal entrado na adolescência, compareci no Automóvel Clube de Belo Horizonte para cumprir o dever de ser sociável. Numa noite de junho de frio intenso, em plena Avenida Afonso Pena, tive um desânimo tremendo ao descobrir que a boate do clube se chamava "Príncipe de Gales" e que os salões não passavam de caríssimas imitações de ambientes europeus, todas de gosto duvidoso, como costumam ser as imitações.
Duas horas depois de chegar, sentindo-me um bem-te-vi na gaiola, afrouxei a gravata e desci as escadarias, abrindo caminho por entre a procissão de gente sofisticada que vinha em sentido contrário, com expressões sofisticadas, maquiagem sofisticada e gestos sofisticados. Eu, que agradeço a Deus a graça de não ser nada sofisticado, fiquei por alguns instantes na porta do clube, ao lado de manobristas e recepcionistas de sorriso profissional, até descobrir na esquina três mendigos que haviam tido a idéia reconfortante de acender numa fogueira na rua usando um pequeno tambor.
Aquela fogueira tremulando no frio me atraiu de modo irresistível. Dez minutos depois, tendo feito uma coleta de moedas, eu e meus novos companheiros compramos bifes de hambúrguer de um vendedor de sanduíches que fazia ponto em frente. A refeição em volta do fogo estava tão boa que me fez esquecer dos sons que o baile despejava pelas janelas e me deu saudades do chapéu de feutro que eu usava para caminhar no campo em noites de vento. Não me lembro de ter participado de uma festa junina mais autêntica.
2 comentários:
Essa história é bonita! Mais bonito ainda é ver alguém ser fiel a si mesmo... é a melhor parte.
Márcio, compreendo perfeitamente o que quer dizer, apesar de não fazer ideia do que é "uma siriema correndo pelo pasto." Sem as minhas vivências rurais no Alto Minho, até ao 10/11 anos, não imagino sequer que pudesse querer escrever. Um abraço atlântico, nesta época em que também as festas - Sto. António em Lisboa, S. João no Porto - dão um pouco de animação (e talvez mesmo um pouco de alma) às gentes portuguesas.
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