sexta-feira, 27 de março de 2009

Senhor, tende piedade dos utilitaristas



Do "apesar" ao "porquê": uma reflexão matinal sobre a literatura

Gosto da expressão "entregar a Deus". Ela é uma forma genuinamente popular de dizer que algo está fora do alcance e da possibilidade de intervenção humana. É preciso entregar a Deus aquilo que não conseguimos resolver. E confiar na Sua misericórdia.
Foi o que pensei ontem ao folhear o material didático de uma das grandes redes de ensino do país. Numa das apostilas, com capa convincente e conteúdo duvidoso, havia um tópico inteiro destinado a explicar ao estudante a utilidade prática da literatura.
É preciso entregar a Deus quem busca qualquer tipo de utilidade na literatura. E também merecem ser entregues à Sua infinita bondade aqueles que dizem apreciá-la apesar de sua inutilidade. A salvação estética dessas almas só ao Pai Eterno compete.
A literatura não é boa apesar de inútil. Ela é boa porque é inútil. Sua inutilidade significa que ela, como toda arte legítima, transcendeu o campo do necessário, do contingente, daquilo que devemos fazer no cotidiano, com ou sem vontade, para ganhar a vida.
A literatura, como arte, é jogo e brinquedo de palavras. É prazer. Precisa de tratamento, ou de oração, quem busca utilidade no prazer e mesmo quem perde tempo tentando teorizar sobre ele. Esse tempo, aliás, é sempre roubado ao exercício fundamental de viver.
No entanto, aí estão os fazedores de apostilas ginasiais gastando papel para doutrinar crianças e adolescentes quanto à utilidade prática da literatura. Melhor seria que optassem por dizer as coisas de modo direto e honesto, usando para isso as palavras certas.
É fácil explicar a utilidade da literatura. Ela é tão útil quanto uma sinfonia de Bethoven, uma canção de Chico Buarque, uma tela de Picasso ou uma estátua de Rodin. Tão útil quanto levar os filhos ao cinema ou beijar na boca e passear de mãos dadas no jardim.

9 comentários:

Letícia disse...

Mais uma vez, devo dizer que concordo com você. Estou entregando a Deus alguns professores que conheço. Eles e suas ideias de leitura como forma esquemática para educar o cérebro de um adolescente, quando, na verdade, leitura seria exatamente o oposto. Seria a libertação. O adolescente, aluno, seja quem for, pode alcançar muito mais que a simples decodificação de signos atravás da leitura. Isso implica a literatura arte. Algo que liberte e traga outros pensamentos, outra forma de ver as coisas e criar opiniões. Algo que me matava nos tempos de escola eram aqueles livros tipo Clara dos Anjos, Dom Casmurro e sempre vinham acompanhados com aqueles questionários infernais de interpretação de texto. E o pior de tudo. Sou obrigada a usar essa metodologia ainda. E o pior. Meus alunos devem ler em inglês e responder o tal questionário em inglês. Estou procurando salvação, mas está difícil.

mariza lourenço disse...

Márcio e Letícia,

não sou educadora, mas não vejo salvação sem uma completa reestruturação e radical mudança do modelo atual.

bem, rezar não custa nada, né?

oremos, irmãos. *;)

gloria disse...

a literatura é como um elo entre o ordinário, o banal e tudo que enseja a "invisível" mào de Deus. Ela é do lugar dos transbordamentos que correm na direçào das palavras. Gostei do apelo aos utilitaristas e, acrescento, aos normativos de plantão. Teu blog faz pulsar intensidades. bjs

Sueli Maia (Mai) disse...

Lá vem a doida...

E entre o utilitário e o supérfluo, felizmente, estamos nós.
E nós pensamos. logo, existimos. E existir prá comentar esse teu texto é bárbaro. Mas prá aguentar a inutilidade de uma apostila dessas, eu juro Márcio, não vou evocar o nome de Deus em vão porque isso é igual a jogar pedra na cruz. Vai-se pro inferno direto e reto...

Agora é assim: Eu sempre fui meio crítica do edonismo ortodoxo
(isso existe?)mas lendo esse teu texto, eu faço um mea culpa: sou viciada nos prazeres das letras... Jamais deixarei que abram um desses grupo de auto-ajuda, LA -leitores Anônimos ou LC - Leitores compulsivos como os AA's e os NA's e os adictos...
Porque é o melhor dos prazeres...
Ou é mesmo um vício bom.


Vamos combinar que é um pé no saco, ler uma apostila dessas e me admiro de ti com crise de enxaqueca leres um entulho desses. Vais ferrar teu fígado.
Esse lixo é tóxico.
Não leste a advertência?

Márcio, depois me diz em off qual é a maravilhosa U.....niver....s...idade?
Deu gagueira agora.
Ai eu parti a palavra prá ser mais últil...


Beijos.

Biba disse...

Olá, estive aqui, é o que queria registrar por hoje. Considero importantíssimo o seu post sobre literatura e utilitarismo. Concordo com você e entrego a Deus, não sem reclamar um pouquinho.
Gostei demais do seu blog. Vou voltar!

Bju
Carpe Diem!!!

Anônimo disse...

Márcio,
Como educador, eu bem sei o que você sentiu ao ler tais apostilas.Sua crítica tem fundamento. A experiência literária, assim como os outros tipos de artes, só se justifica a partir do momento que estamos dispostos a transceder os limites dos sentidos por puro prazer.É uma experiência única e pessoal, ao contrário da Literatura capitalista.
Um abraço.

Biba disse...

Boa noite, coloquei seu blog entre os meus preferidos.

beijo
carpe diem!!

DÉBORA disse...

Literatura é sabor! Tão inútil que chega a ser indispensável, haha! Ótimo post! ;)

DÉBORA disse...

Valeu pela visita, Márcio!
Amo literatura, com certeza! :D
Virei aqui mais vezes!
Saboreie os Exercícios de ser criança e depois nos conte a experiência!
Abraços