domingo, 15 de março de 2009

Para embalar a madrugada

Noites claras
A insônia está passando nova temporada em minha companhia. Para fazer-lhe as honras da casa, tenho tido noites claras e dias sonolentos. O fato é que a insônia me conhecece bem. Visita-me desde a infância e sabe como me reter a seu lado o quanto quiser. Sua principal estratégia para que meus olhos não se fechem são as perguntas.
Foram várias as que ela lançou à minha mente nos últimos dias, com temas que vão do trabalho (Como identificar o ponto em que o exercício de uma atividade profissional deixa de ser oportunidade de aperfeiçoamento e criação para se transformar em rotina?) à religião (Há lugar no mundo para cristãos que não crêem em igrejas?).
Na noite de ontem, quando meus olhos começavam a se fechar depois de longa e silenciosa conversa, a insônia veio com esta: Já que toda criação é um ato solitário, é o caso de saber se a solidão de quem escreve diários virtuais deixa de ser solidão pelo fato de estar sendo lida. Pedi trégua. Com perguntas assim não há sono que resista.
***

Estou pensando em comprar uma cadeira de balanço para receber mais comodamente as visitas da insônia. Sou do tipo que só vai para a cama quando o sono chega. Se ele demora a chegar, costumo me sentar para esperá-lo.
Nessa espera, é comum que minha cabeça termine tombada sobre um livro aberto na mesa e que eu acorde em sobressalto, na madrugada, com as janelas abertas e o vento balançando as cortinas, como se fizesse a gentileza de me avisar que preciso fechar a casa e ir dormir.
Esperar o sono na cadeira de balanço há de ser melhor do que esperá-lo na dura mesa de leitura. Pelo menos, as madrugadas serão embaladas por um suave ir e voltar do corpo, o que não deixa de ser uma boa perspectiva para quem se dedica ao estafante ofício de tentar adormecer.
***
Nos anos que passei na capital, eu ocupava um apartamento no 23º andar e tinha dificuldades extremas para dormir em razão daquele zumbido gigantesco que as grandes cidades fazem mesmo à noite. Voltei para o interior, onde há outro zumbido, o das ruas e casas silenciosas. A esse, porém, eu estou acostumado. É um zumbido amigo, que cresce no meu ouvido na proporção em que os grilos deixam de cantar e as folhas das árvores param de se balançar ao sabor da aragem noturna. Com esse silencioso ruído eu me entendo bem. É na presença dele que eu tenho conversado comigo mesmo nos últimos trinta e seis anos.

3 comentários:

Fernanda Rocha Mesquita disse...

Tambem aproveito a insónia para fazer coisas que de dia o tempo e a agitação não deixam... ler escrever meditar são coisas que impedim de tratarmos a insónia como nossa inimiga... parabens pela sua forma clara de escrver... nos convida á leitura

Letícia disse...

Márcio,

Seus textos são formidáveis. Mesmo quando você escreve com um certo ar irônico (como já aconteceu em outros textos), não é uma ironia repetitiva. É sempre novidade. Gosto de ler seus textos e não os vejo como um diário virtual. São outra coisa. Crônicas de um observador. E o que mais me chama atenção são os títulos.

E as perguntas também me assombram e não só na madrugada. Eu acordo com essas perguntas e durmo com elas. Eu tenho uma cadeira de balanço, tenho insônia e vou tentar fazer o mesmo que você.

mariza lourenço disse...

demorei a comentar esse texto porque ele me provoca tantas, mas tantas lembranças, que é difícil ordená-las dentro de um corpo e coração entrado em anos. e parece que tenho tantos e, na verdade, tenho. meu travesseiro sabe.

então, permita a esta amiga, um instante de egoísmo para contar uma, talvez duas coisas. sim, e isso é uma homenagem à capacidade que um escritor talentoso tem de provocar a súbita necessidade de escrever em outro.

ganhei uma cadeirinha de balanço quando completei 05 anos, acho que eu já era velha nessa época e meu pai sabia e me deu a cadeirinha. nessa época eu também já não dormia muito. sempre de olhos arregalados, esperando o tempo passar, mas eu ainda tinha alguns sonhos em meu favor. então, eu sonhava de olhos abertos com o que me parecia possível. a cadeirinha quebrou e eu cresci. talvez ela não tenha suportado tanta coisa minha.

quando meu pai morreu eu não conseguia dormir em qualquer cama. somente na cadeira dele e encolhida. por muito tempo foi assim até que a levaram embora. o corpo ficou, mas um pedaço da alma foi junto. desconheço seu paradeiro, mas, suponho que esteja feliz, voando ao lado da dele, que asas ele sempre teve. meu pai apreciava passarinhos.

obrigada, Márcio, por me fazer lembrar. o relato acima fica de presente para você, que é tão meu amigo, e entende dessa coisa de voar.