terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Memórias do ano vindouro


Um reveillon de 30 anos atrás
A primeira vez em que prestei atenção à palavra "reveillon" foi, se não me falha a memória, quando eu tinha 6 anos. No antigo e grande sobrado de meus avós paternos, onde eu ia aos finais de semana para ver meu pai, notei uma movimentação inusitada de preparativos para "a passagem". Planejava-se a compra de bebidas, preparavam-se alimentos, arrumava-se a casa. Curioso, eu queria saber o que iria passar de tão importante ao ponto de justificar essas medidas. Disseram-me que "a passagem" seria na noite do dia seguinte, 31 de dezembro, como se isso explicasse tudo. Com medo de que me tomassem por tolo, tratei de colocar no rosto uma expressão de quem tinha entendido o caso. Mas o fato é que me escapava por completo o sentido daquela movimentação.
De volta à minha casa e ao convívio com os garotos reunidos na calçada, a dúvida novamente me assaltou ao ouvir a conversa de alguns amigos maiores, todos entusiasmados com o reveillon. Não ousei pedir explicações detalhadas, pois temia ser apontado como o único sujeito da rua que não sabia o significado dessa palavra estrangeira. Por dentro, eu me via em apuros de curiosidade: como perguntar o que era o reveillon a garotos mais velhos que enchiam a boca para dizer "vou passar com meus pais" ou "vou estar de roupa nova na passagem"? Eu não considerava a possibilidade de perguntar à minha mãe, pois ela já me havia dito que eu era o homem da casa desde que se separara de meu pai. E, para mim, homens da casa tinham obrigação de saber o que era o reveillon.
À noite, assistindo a programas de TV e já não mais podendo me conter, tive de abrir mão do amor próprio de homem da casa e perguntar qual era, afinal, o significado desse evento que iria passar por nós na noite seguinte em meio a festas. Aproveitei o momento em que um comercial falava em "boas festas", "ano vindouro" e, claro, "reveillon". Fiz um ar de quem pergunta por perguntar, sem dar maior atenção à resposta, mas minha curiosidade não passou despercebida de minha mãe. Calmamente, ela me disse que o reveillon era a data em que comemorávamos o fim de uma etapa e o início de outra. A razão da comemoração, segundo ela, é que as pessoas esperam muito do próximo ano e até prometem a si mesmas fazer o possível para que as coisas sejam melhores nele.
Naquela mesma explicação eu aprendi que "vindouro" é o que se diz do ano que está por vir. E fui informado, para o meu espanto, de que muitas pessoas tinham o hábito de passar o reveillon de roupas claras, mais adequadas para atrair a sorte. Esse reveillon, pensei comigo mesmo, há de ter em si algo de diferente, assim como o Natal, que para mim era uma festa de aniversário peculiar, na qual as pessoas trocam presentes por não poder dá-los ao aniversariante, que, sendo filho de Deus, prefere ficar com seu pai acima das nuvens. Entusiasmado, decidi que ficaria acordado na noite seguinte para testemunhar os prodígios da "passagem" e já me imaginava observando a sorte que subitamente envolveria as pessoas vestidas de branco, eu inclusive.
Não consegui realizar meu intento. Passei o último dia antes da "passagem" em franca atividade. Se não estou enganado, além de percorrer por várias vezes a calçada com meu triciclo amarelo movido a pedal, inspecionei meu criadouro particular de tatus-bolinhas, que vinha a ser um canteiro que eu preparara com minhas próprias mãos; montei uma pipa que depois se recusou terminantemente a decolar mesmo nos dias de vento de janeiro; e persegui valentemente um gato angorá que espantava os pássaros do "aeroporto" que havia num pé de limão plantado no fundo do quintal. À noite, senti no corpo o peso daquelas atividades e me recostei no sofá. Segundo me contou depois minha mãe, tive de ser levado para a cama, em sono profundo, quinze minutos depois. Despertei no outro dia para descobrir, desolado, que havia perdido "a passagem".
Repreendendo em mim mesmo aquela falta de firmeza — onde já se viu um homem da casa dormir sentado no sofá? —, decidi esquecer o episódio e renunciar a entender aquela história de "reveillon", roupas brancas e distribuição de quotas extras de sorte aos participantes da "virada". O assunto permaneceu esquecido por cerca de três meses, até o dia em que recebemos a visita de meu primo Vicente, que era matemático e astrônomo e fizera, cerca de dois anos antes de eu nascer, a co-descoberta de um astro, o Cometa White-Ortiz-Bolleli. Eu costumava ouvir com atenção aquele homem alto, magro, de cabelos grandes e já um pouco grisalhos, muito simples, sempre ajeitando os óculos com dedos longos e finos e respondendo a perguntas de curiosos sobre ciência e religião e outros temas de espinhosa convivência.
Vendo-o explicar com calma por que não deveríamos crer em previsões de horóscopo, tão valorizadas pelas empregadas de minha casa, lembrei-me do "reveillon" e de toda aquela sorte que, segundo me diziam, ele traz consigo. A explicação de Vicente não deixou dúvidas: vivemos numa bola, que é a Terra, a qual gira em torno de uma bola de fogo muito maior, o Sol. O reveillon é o momento em que nossa bola termina de dar uma volta completa em torno da bola maior e começa outra: nem mais nem menos do que isso. Para tornar mais fácil o entendimento do que dizia, Vicente circulava em torno de uma cadeira enquanto falava, assinalando o "ponto do reveillon", isto é, o ponto em que terminava uma volta em torno da cadeira e começava outra. E explicava que a volta da Terra dura 365 dias, os quais estão agrupados em meses e semanas.
Com um didatismo que até hoje me impressiona, Vicente me disse, com palavras das quais não me recordo com exatidão, que a contagem do tempo era feita com base nessas voltas. Além da volta que a Terra dá em torno do Sol, há as voltas que ela dá em torno de si mesma, como um pião que não precisa de corda para rodopiar de modo ininterrupto. Esse rodopio é feito em 24 horas: quando está claro, é porque a parte da Terra em que estamos se encontra virada para o Sol; quando está escuro, é porque ela está de costas para a bola de fogo. Entendi que "dia", "noite", "meses" e "anos" não eram mais do que marcas assinaladas pelos homens na eterna contagem de voltas e rodopios do planeta em torno do Sol ou de si mesmo. Foi então que me surgiu uma dúvida, que expus a Vicente, sempre disposto a debater:
- Se o reveillon é só o fim de uma volta e o começo da outra, por que não podemos ficar tão alegres e esperar a mesma sorte no começo de cada dia, que no final das contas é só um rodopio da bola em que nós vivemos?
Vicente demorou alguns segundos para me responder. Tirou os óculos e, num gesto típico, juntou os dedos indicador e polegar em torno do osso do nariz, como se quisesse massageá-lo. Enfim respondeu:
- Faz sentido. Do ponto de vista científico, não há mesmo nada que nos impeça de sentir, em cada novo dia, a mesma alegria e a mesma esperança que sentimos na virada do ano. Sua dedução não está errada. No fundo, é a mesma coisa.
Minha mente se iluminou. Além de ganhar um elogio por ter feito uma "dedução", embora não tivesse a menor idéia do que fosse isso, eu tinha desvendado a essência do reveillon. Mais do que isso: tinha descoberto uma forma de manter sua magia pelos 365 dias do ano.


PS: Há cerca de 5 anos, após me incentivar a observar estrelas e despertar de modo amigo a minha curiosidade científica para tudo o que diz respeito ao mundo natural, Vicente Ferreira de Assis Neto foi se posicionar em definitivo no infinito Observatório do Céu, de onde vê agora as estrelas de perto, sem necessidade do grande telescópio newtoniano de 310 mm que possuía em sua fazenda. Ainda hoje, seu nome aparece na lista dos brasileiros cujo trabalho está registrado com louvor em centros de pesquisa dos Estados Unidos e da Europa. Com sua curiosidade insaciável, sua admirável honestidade intelectual, sua simplicidade franciscana de cientista e, sobretudo, sua amizade, Vicente me faz falta. Muita falta.

3 comentários:

Anônimo disse...

Márcio
Um ótimo 2009 para você!
Um grande abraço

Anônimo disse...

Como é despretensiosa a visão de uma criança frente ao "ano novo"... Afinal de contas é um dia como qualquer outro, a não ser o acréscimo de um algarismo no número que representa o ano que se inicia. Nada demais! Assim o seria se não tivéssemos uma aura sentimental que valoriza qualquer expectativa de mudança, de transformação. Esperamos, sim, que cada dia seja especial, único! E assim desejo que todos vivam da melhor forma possível, todos os dias, atentos e valorizando cada pequeno detalhe dessa imensa "passagem" que é a vida. Márcio,
que sua vida e de toda a sua família seja coberta de luz e prosperidade. Felicidades todos os dias!

Clea Pinheiro disse...

A cada dia você escreve de forma mais comovente, numa sequência lógica, muito agradável de acompanhar... seus textos são cada vez mais profundos e propositadamente simples, o que é outra forma de dizer: sofisticado.
Parabéns!
Felicidade nesta 'virada de ano' e em todas as 'viradas' que pretender fazer em sua vida!