sexta-feira, 28 de maio de 2010

Um céu particular

Nascido em uma família católica do interior, eu flertei algum tempo com a teologia. Algumas prateleiras das minhas estantes ainda conservam vestígios desse entusiasmo juvenil. Lá estão, já um tanto cheios de poeira, volumes de Karl Barth, Hans Kung e outros do mesmo quilate. Se o interesse pelos escritos desses e de outros ilustres pensadores acabou, a culpa é do céu. Sim, do céu. Quando passei a frequentar os volumes dos teólogos, eu já tinha sobre o céu uma ideia bem definida, trazida da infância. É a mesma ideia, aliás, que ainda me acompanha. Ocorre que ela não cabe no pensamento altamente racionalizado dos grandes teólogos sistemáticos. E foi por amor ao meu céu, e pela decepção que tive ao compreender que os sistemas dogmáticos não o comportavam, que desertei das hostes da teologia.
Acho que não fiz mau negócio. Um filho de Deus deve ter, afinal de contas, o direito de manter sua ideia de céu, por mais humilde que seja, sem ser importunado por eruditos tomos de dogmática. Ao contrário dos estudiosos dos dogmas fundamentais da fé cristã, eu nunca quis que o meu céu fosse imposto a ninguém. Contento-me em ser o único ser deste planeta a crer nele e acho que as coisas estão muito bem assim. Em compensação, estou pronto a respeitar o direito de cada homem ou mulher terem o seu próprio e inconfundível céu, que representa, para cada um, a síntese e o máximo de bem aventurança que se pode conceber. Cada um tem o seu céu, e ninguém tem nada com isso: eis aí o meu único lema teológico.
Gosto de diferenças e fico feliz ao ver que existem diversas concepções de céu. Quando compreendi que cada uma é uma forma de lidar com a esperança de que o fim não seja de fato o fim, passei a acreditar que não pode haver hierarquia entre elas. Desde então, eu me ponho, sempre que possível, a observar o tipo de céu em que, a julgar por seus atos, as pessoas acreditam. Há os que, encantados com as mulheres e os prazeres, imaginam o céu como um grande harém ou uma infinita festa. Se não estou enganado, algumas crenças orientais sustentam essa ideia. Não nego que ela é tentadora, mas, se fosse perguntado, teria de dizer que não quero para mim essa concepção. Do mesmo modo, sou obrigado a declinar da igualmente tentadora concepção de céu como o lugar em que todos os anseios de conhecimento são satisfeitos.
Prazeres, vontade de conhecimento e tudo o mais que tenho entrevisto nas concepções de céu alheias não me convencem a abrir mão do meu particularíssimo conceito. Reconheço que o meu céu pode ser bem mais simples que a maioria dos outros. Mas não posso renunciar a ele, pois isso seria o mesmo que renunciar a algo muito profundo na minha personalidade. Os que se deram ao trabalho de ler até aqui esse amontoado de divagações celestes talvez já estejam se impacientando e fazendo a si mesmos a pergunta óbvia: Mas qual é, afinal, essa ideia de céu que suplanta todas as outras? Satisfaço sem delongas essa potencial curiosidade dizendo que o meu céu está repleto daquilo e daqueles que mais me tocaram e que não mais tenho junto de mim.
No meu céu estão todos aqueles a quem amei, a começar por meus avós paternos, com sua simplicidade de fazendeiros. Muitos anos depois de eles me terem deixado, continuam vivas em minha mente as manifestações de amor gratuito que me deram, as maiores que já encontrei. Quando a saudade me oprime o peito e eu tento tentar enxergar mais longe na distância do tempo, vejo-me na grande casa da fazenda, sentado junto daquele casal já idoso, que teve a sensibilidade de transformar, aos meus olhos espantados, o divórcio de meus pais na perspectiva de uma nova e acolhedora convivência familiar.
Nesses momentos, de olhos fechados, sou tomado pela vontade de voltar a brincar despreocupado, como brincam as crianças que se sabem incondicionalmente amadas. E quase chego a ouvir a voz de meu avô dizendo-me confiante que eu vou vencer as adversidades, da mesma forma como venci, com a ajuda dele, uma bronquite crônica, ou sentir as mãos de minha avó passando sobre os meus cabelos já um tanto grisalhos da mesma forma como faziam quando eu tinha seis anos. Na sua simplicidade, que não cabe na erudição teológica, essa experiência é a mais valiosa que tenho. Eis aí o meu céu particular.

1 comentários:

Viviana disse...

Marcio

Acabada de chegar aqui, pela mão da minha amiga Fernanda,por quem tenho um carinho muito especial, vim lendo os esus posts por aí abaixo.

Suscitou-me muita curiosidade o tema deste.

Até porque "as grandes cabeças", não têm qualquer interesse em falar do céu.

Isso é para os simples...para os pequenos.

Olhe, gostei do seu texto.Achei-o deliciosamente belo.
Sobretudo, porque sendo a pessoa que é...não teve vergonha de falar do céu.

Eu, na minha modéstia e simplicidade, também não tenho.

Aliás, falo, e penso muito sobre o céu em que acredito.

É o céu que Jesus disse que iria preparar para aqueles que o aceitassem como Senhor e Salvador.
E eu aceitei-o na minha longínqua adolescência. (tenho quase 70 anos)

Como o Márcio, sei que me esperam lá os meus queridos que já partiram, como por exemplo o meu pai e a minha mãe.

Qualquer dia eu irei ter com eles e será lindo o nosso encontro.

Mas mais lindo, mais lindo, vai ser o encontro tão almejado com aquele que me amou de tal maneira que deu a sua vida por mim numa sangrenta cruz: JESUS

Desculpe lá a extensão deste comentário.

Desejo-lhe um lindo dia e uma linda semana

Um abraço daqui de longe

viviana