domingo, 23 de maio de 2010

'Era outono pouco tempo atrás' ou 'De como estou me transformando num caso perdido'

Era d’autunno e tu eri con me,era d’autunno poco tempo fa
(Era d´estate)
Convertido, embora contra a minha expressa vontade, em comentarista de fins de semana, eu que tanto me ri dos atletas de sábado e domingo, tenho feito um sincero e persistente esforço para ser capaz de dizer coisas minimamente aproveitáveis neste espaço duvidosamente aproveitável. Entretanto, a realidade se impõe. E lamento informar àqueles a quem interessar possa — e estou conformado com a ideia de que são bem poucos — que meu empenho não está sendo bem sucedido. Planejei um comentário sobre minhas últimas leituras, e ele insistiu em não sair do papel. Pensei em retomar minhas notas sobre pintura e música, resquício de tempos mais produtivos, mas nada se materializou. Restou-me, por exclusão de todas as demais alternativas, a de discorrer aqui sobre a minha comuníssima vida cotidiana, que deveria ser a última coisa a figurar nestas páginas, tamanha a sua carência de novidades. Neste cotidiano desprovido de graça, a única novidade (mas é uma antiga novidade, o que, afinal, é o mesmo que não ser novidade...) é que o embate entre a minha racionalidade e a minha veia lírica vai sendo vencido por esta última com um favoritismo que eu, espantado, já não posso ignorar. Os livros dos filósofos que mais prezo estão receptivos às traças, enquanto os de poesia, O Guardador de Rebanhos à frente, têm as folhas cada vez mais gastas. Os últimos filmes políticos que comprei não tiveram sequer a exibição dos 30 segundos iniciais, mas as histórias plenas de sentimento já parecem saber sozinhas o caminho até a TV. Que não se pense, porém, que tenho tido longo tempo de convívio com o cinema e a leitura. Muito antes pelo contrário. O pouquíssimo tempo livre que me resta tem sido requisitado, impiedosamente, pelo vinho e pela música italiana, tanto a erudita (ninguém resiste à ópera, afinal de contas), quanto pela popular. Agora há pouco, enquanto me barbeava, eu, que não canto nem mesmo sob a ducha que a tantos inspira, me peguei cantarolando Teresa e, principalmente, Era d'estate, de Sergio Endrigo, num italiano que faria rir numa comédia romântica. Meu lado racional ironiza: "Onde já se viu isso? Um sujeito que já tem sobre os ombros 37 anos e muitas responsabilidades aparecer agora, sem mais nem menos, e sem nada que o justifique, com esse ar perdido no horizonte, como um garoto deslumbrado..." A minha veia lírica não responde. Apenas ri dessas críticas e, ignorando-as solenemente, numa atitude que chega à temeridade (o que vai ser da minha razão, meu Deus!), me instiga, com jeito manso e doce, a voltar às melodias de Endrigo, ouvidas, de preferência, da mesa de quintal que transformei em posto de observação do céu de maio. (Esqueci de dizer que já não perco um por do sol, o que não deixa de ser outro sintoma preocupante). Custa admitir, mas o senso de honestidade me obriga a fazê-lo: não está, de modo nenhum, excluída a possibilidade de eu estar a caminho de me transformar num caso perdido.

3 comentários:

Helô Müller disse...

Que bom que a sua veia lírica predomina sempre!!... Saímos todos no lucro!! "Podiscrê"... rs
Me encanto com a sua forma de escrita! Aliás, não só eu, mas todos os que batam os olhos em seus ricos e agradáveis textos!
Bj
Helô

Letícia Palmeira disse...

Vai ver somos todos casos perdidos.

E é só questão de fase.

Você é bem jovem pra se achar perdido porque canta trechos de músicas enquanto faz a barba.

E, quanto ao seu blog, ainda o considero um dos melhores.

Pedro Caulfield disse...

Como já dizia Humberto Gessinger...
"Tudo bem, seja como for, seja por amor as causas perdidas"
Acredite, as pessoas mais interessantes são casos perdidos, se são...