sábado, 18 de julho de 2009

Bagagem

Quando tiverem sido percorridos todos os caminhos, restando atravessar a ponte sobre o último rio, haverão de me acompanhar até o outro lado da margem:

a epifania do doce-de-leite saindo do forno na cozinha da fazenda,
a luminosidade mágica das chamas no fogão à lenha em noites frias,
a exultação do passeio inaugural na primeira bicicleta,
a promessa de liberdade dos últimos dias de aulas antes das férias,
o espírito de aventura pairando no ar durante os passeios ao campo,
as noites sonhadoras de São João, com fogueira, danças e bandeirolas,
a descoberta da força de ser jovem nas canções de protesto do rock,
a sensibilidade misturada à razão em alguns concertos e sinfonias,
os sonhos inspirados por versos lidos e sempre redescobertos,
a satisfação de pagar as contas com o dinheiro do primeiro salário,
a melodia intraduzível do choro e dos risos que vêm do berço,
o privilégio de apoiar um pequeno corpo que aprende a caminhar,
a vibração de ouvir palavras e frases que começam a ser esboçadas,
a ansiedade de esperar todo ano que três amigos cheguem de férias,
a descoberta da profundidade humana em alguns pensadores,
a espiritualidade transbordante de algumas taças de vinho,
o sentido de grandiosidade do céu estrelado em noites claras,
a paz profunda do luar visto e reverenciado da varanda,
a felicidade de estar vivo para assistir ao nascer e pôr do sol,
a compreensão tranquilizadora de que as pedras são parte do caminho,
o sentimento de que foi bom ter caminhado, qualquer que fosse o terreno.
Haverá de acompanhar-me, enfim, um gosto de transformar o viver em palavras, como quem olha para trás ao chegar ao fim da ponte e vê com naturalidade que suas pegadas ficaram impressas ao longo de todo o caminho que liga o princípio ao ponto final.

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