Sobre picos e abismos
A paisagem das minhas tendências enquanto rabiscador de linhas alterna picos e abismos. No fundo destes, tendo a deixar os sentimentos com os quais tenho dificuldade de lidar. Sobre aqueles coloco as idéias que, por julgar originais, desejo pôr à vista de todos. O tempo, analista imparcial e rigoroso, vem me mostrando um paradoxo: minhas idéias são muito menos minhas do que eu supunha. Ainda que estejam em local visível, não dizem tanto de mim quanto eu imaginava. Em compensação, as profundezas de sentimentos contêm minhas características mais originais. Tanto é assim que, ao escrever algo sobre mim que não venha do fundo, por mais racional que seja, tendo a pensar que me traio. Não chego ao ponto de dizer que o pássaro da razão não possa sobrevoar essa minha acidentada paisagem interior. Ele tem seu papel. Cabe-lhe descer ao fundo e trazer de lá, presas pelo bico, partes das minhas profundidades que deveriam estar no topo. Antes disso, porém, ele precisa sobrevoar os picos e, com um bater de asas, retirar de lá o entulho que a minha ingenuidade acumulou e pôs à mostra como se fosse tesouro. Quando me dei conta disso, percebi que escrever, para mim, é como garimpar. As jazidas mais valiosas não costumam ser encontradas no alto das montanhas. Estão sempre muito abaixo da superfície.
1 comentários:
Caro sonhador incorrigível,
Nem Fernando Pessoa sabia quantas almas tinha... Todas as almas são suas, ame-as - sem uma delas, não seria você.
Bela reflexão.
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