domingo, 29 de março de 2009

O maior poema da literatura


Tarde de chuva na velha matriz


Vou abrir meu ouvido a um provérbio;
Ao som da lira proporei o meu enigma. (Salmo 23)


Deveria haver um decreto divino proibindo os seres humanos de sentirem falta de pão nas tardes chuvosas de sábado em que o carro não está na garagem. Afinal, sempre se pode jejuar em benefício da alma até que a tempestade passe. E, claro, sempre há na cozinha bolachas, roscas e, como estamos em Minas, pães de queijo e broas de fubá.
Mas os que têm fome de pão sabem que ela é incontornável e insaciável por qualquer outro meio. E hão de compreender o motivo pelo qual eu me pus a caminho da padaria contando com a sorte para não chegar encharcado. Mas a sorte costuma falhar. E falhou em frente à nossa bicentenária igreja matriz, onde, aliás, não ponho os pés há anos.
Para fugir à chuva forte, dessas que se riem da fragilidade dos guarda-chuvas, tive, como peregrino molhado em busca de pão, a idéia de me esconder na Casa do Senhor. Bastaram cinco minutos dentro da nave central, com suas imagens, pinturas e longas filas de bancos de madeira, para me transportar de volta à infância.
Sob o abrigo seguro das grossas paredes, esqueci a roupa úmida e a fome ao rever a sequência de imagens da via-sacra com reproduções de gravuras de Gustave Doré que já deveriam estar lá quando meus avós fizeram a primeira comunhão. Na 13ª estação, que mostra a retirada de Cristo da cruz, meu pensamento se deteve. E voou longe.
Aterrisei no versículo 13 da Primeira Carta de Sâo Paulo aos Coríntios, que tem estado em meu pensamento nos últimos dias. Intolerante com as coisas da teologia ao ponto de me confundir com os mandamentos que Deus ditou ao bom Moisés, conservei, entretanto, desde a infância, uma inabalável devoção àquele trecho do grande Apóstolo.
Ali, na catedral vazia, ocorreu-me que, se nada mais tivesse sido escrito na literatura cristã, bastariam aquelas palavras de São Paulo para dar origem a uma religiosidade capaz de mostrar ao homem um caminho para ser feliz. Único trecho da Bíblia que identifico pela numeração, 1 Cor., 13 tem sido o começo, o meio e o fim da minha religião.
As nuvens carregadas da descrença teológica e da desilusão espiritual têm passado com alguma frequência sobre a minha cabeça. Mas aquele pequeno trecho se mantém de pé, como um estandarte da minha fé, por mais forte que seja a tempestade que sobre mim se abata. Nele não há dogmas, pecado, penitência ou hierarquia: apenas o essencial.
Talvez seja por isso que o que restou de místico em mim após os vendavais do ceticismo vibra hoje, com a mesma intensidade do dia em que o li pela primeira vez, ao correr os olhos pelo poema do Apóstolo. Para mim, é o texto religioso com as mais belas comparações que a literatura produziu. E, como se vê, o que menos precisa ser explicado:


"Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.
E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.
E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.
O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece.
Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos; Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado.
Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido.
Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor".

Era na profundidade absurdamente grande dessas palavras, compostas com uma singeleza lírica que impressiona, que eu pensava quando o sino da matriz bateu quatro horas e me lembrou da minha fome de pão. Quando saí, a tempestade tinha se transformado momentaneamente numa chuva fina. E os canteiros verdes da praça pareciam agradecer a dádiva vinda do céu.

7 comentários:

mariza lourenço disse...

Márcio,

por curiosidade inicial passei a acompanhar seu blogue e, depois, por admiração segui acompanhando. mais recentemente, por questão de ofício, li absolutamente todas as suas postagens. em todos os seus textos me detenho em busca de algo que possa levar para mim, como aprendizado. nunca saio daqui de olhos vazios. sempre aprendo com o Professor, do qual nunca deixarei de ser aprendiz.

no entanto, esse texto, bastante oportuno para um dia em que devemos render graças pelo que temos e somos, é sem dúvida o que mais me tocou, e de fato, aquele que mais me faz comentar com emoção.

independente de crenças, de dogmas, da diversidade de opiniões a respeito da fé, é no amor que subsiste e resiste a alma do homem de bem, daquele que opta pelo caminho da retidão. daquele que, embora possa por livre arbítrio escolher as facilidades das vias tortas, opta pelas batalhas diárias, opta pelo sol escaldante e pela chuva que encharca.

o amor, esse sentimento que aproxima, que solidariza, que não enxerga defeitos, que eleva a alma, é a única coisa que realmente importa àqueles que o compreendem como sentimento universal e único.

e é na alma arrebatada do homem que ama e crê que enxergamos toda a sua trajetória, toda a sua bondade e disposição para ser melhor consigo mesmo e, especialmente, com seu irmão.

parabéns, meu amigo, pelo belo texto e pela oportunidade de me fazer, uma vez mais, refletir.

beijo grande.

Biba disse...

Acredite você ou não, também a mim sempre bateu forte este poema bíblico. Não quero dizer muito, pois a Mariza roubou-me um pouco das palavras. Digo apenas que amei seu texto.
Beijo,
Carpe Diem!!!

Sueli Maia (Mai) disse...

Belíssimo texto
e muito agradável é ler as coisas do amor, em Paulo.
Aqui encerro a formalidade, para primeiro perguntar: cadê o pão?
Ao menos comungaste?
Porque há trigo nas hóstias...

Márcio, eu fico verdadeiramente hipnotizada ao ver vitrais em igrejas. E em Minas há Igreja, das mais belas e em variadas arquiteturas e acústica.
Gosto de Igrejas.
Quando estão Vazias.
Nelas, sinto-me em paz!
O amor está ali, por toda a arte, em cada centímetro há a simbologia do amor do Cristo e em Paulo, eu me emociono como sempre e um pouco mais...

Mas outro dia precisei cumprir formalidades, e fui assistir a primrira comunhão de um garoto que exigia a minha presença.
Eu professo a crença em Deus e apesar da formação católica, não sou praticante de religiões ou dogmas...
O garoto e sua família sabiam disto...
Ocorre que esse menino é daqueles que sente náusea com quase tudo. E já me fez passar vergonha, com manias de limpeza em casa de estranhos.
Pois bem, quando o padre no ofertório falou sobre o milagre da fé, dizendo que ali estariam o corpo de Cristo e no vinho, seu sangue, eu, inocentemente, falei ao ouvido do garoto,

- não vai vomitar porque não há sangue ali, onde ele bebe o vinho. Este é o mistério da fé, em casa eu explico.

Márcio, nem queira saber o que eu arrumei com essa ingênua advertência...
Também não vou registrar aqui.

Bem. Eu estou amando esse teu ritmo e, sobretudo o teu humor...

Abraços,

Mai

~*Rebeca*~ disse...

Adorei!

Mari Marques disse...

Menino que blog lindo!
de verdade!
gostei bastante!
e esse post em especial foi maravilhoso!
posso tornar-me frequente?
um abraço
Mari

Anônimo disse...

Mariza Lourenço, vagabunda sofisticada!

Anônimo disse...

Meta a pica nessa puta dessa Mariza Lourenço logo, Marcio. Antes que ela diga para todos que você é viado. Se não for mesmo, né?