segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Os meus eternos


Saudade: substantivo abstrato surgido do galego-português
e formado a partir do vocábulo latino "solitas". Segundo os dicionaristas, descreve
a mistura de perda, distância e amor

Meu avô materno, Sebastião, tinha 9 fazendas, espalhadas por 3 municípios, 9 filhos e uma grande preocupação: partir deste mundo com a certeza de que sua descendência teria um chão para plantar e colher. Durante os 64 anos que viveu, ele, que via tudo com clareza e sabedoria, embora não tenha cursado sequer a escola básica, limitou seus horizontes às terras de sua propriedade. Não me lembro de que tivesse ido ao litoral uma única vez nem de que tivesse feito qualquer viagem a um ponto turístico. Estava feliz no campo, com seu gado, suas lavouras, seus chapéus de feltro e seus ternos puídos, que lhe davam a aparência de ser o motorista de seus motoristas. Minha avó Marieta, sua esposa, passou a vida tentando agradar ao marido, aos filhos, aos familiares, aos amigos e conhecidos e até àqueles que não conhecia. Entre estes estavam os presos da cadeia pública, vizinha à sua casa na cidade, aos quais ela enviava comida, doces, salgados e o que mais houvesse sobre a mesa. Católica fervorosa, não por medo do inferno, mas por amor a Deus e ao próximo, ía à missa todos os dias e ainda rezava em casa por todos aqueles de quem gostava, tendo o cuidado de listá-los. Com o passar dos anos, a lista ficou grande demais, e ela acabava dormindo na poltrona com o rosário nas mãos.
Meu avô paterno, Márcio, era industrial e vendia por todo o país as balas Santa Rita, produzidas na fábrica de mesmo nome fundada por seu sogro, meu bisavô Baptista de Almeida, que na década de 30 contou com o apoio do governo de Getúlio Vargas para erguer o empreendimento. Industrial por acidente, ele era sobretudo um grande pescador e um violonista reconhecidamente soberbo, do qual me contam que gostava de se instalar com seu violão numa das sacadas do velho sobrado em que morava com minha avó Nilza, uma das pessoas mais discretas, e uma das mais sofridas, que já conheci. Nas décadas de 50 e 60 do século passado, nas noites em que havia bom tempo e era grande o movimento de pessoas na praça central da cidade, meu avô fazia concertos para a lua com sua voz forte e aveludada. Houve quem o chamasse de inconsequente no trato do patrimônio herdado pela esposa, e ele não se incomodou. No fundo, acredito que ele não estava interessado na indústria. Preferia pescar, produzir melodias e distribuí-las a quem as quisesse ouvir.
Meu tio Maurício, um artista plástico ousado e irreverente, passou a vida espantando a cidade com suas opções estéticas e ensinando que o conservadorismo, afinal, não é sempre algo a se defender. Com sua obra pós-moderna, abreviada pela AIDS, aprendi que pode haver tanta beleza em Rembrandt quanto em Picasso. Maurício era diferente de meu primo Vicente, que, por outros motivos, também chocou os conservadores locais por sua mania de doença e sua curiosidade intelectual insaciável. (Ele só abria portões segurando-os pela parte mais baixa da grande, onde era menor, segundo seus cálculos, a probabilidade de haver bactérias). Vicente também espantou a cidade por deixar de lado o trabalho na extensa fazenda que havia herdado dos pais para se dedicar com exclusividade à matemática e, sobretudo, à astronomia, sua paixão. No início dos anos 70, numa noite em que descansava das observações científicas olhando o céu em busca de beleza, ele deparou com uma luz diferente e acabou descobrindo uma supernova que a comunidade científica internacional batizou com o seu nome.
Todos estão agora naquela condição em que coloco as pessoas que, ao desaparecerem da linha de alcance dos meus olhos, reapareceram dentro de mim. É deles que me lembro hoje, neste dia que se convencionou dedicar à lembrança dos que já terminaram o caminho que nós ainda estamos trilhando. Os meus eternos — é assim que os chamo — eram muito diferentes entre si, e penso que não haveria como conciliar suas características e suas idiossincrasias no espaço que fica acima da grama e abaixo das nuvens. Como juntar a timidez de fazendeiro de meu avô Sebastião com a alma de artista de meu avô Márcio? De que modo unir a irreverência artística de meu tio Maurício com o espírito metódico de meu primo Vicente? Isso, antes impensável, tornou-se possível agora que eles se encontram juntos no céu da minha memória. Neste céu estão, em celestial harmonia, as fazendas e os violões, a astronomia e a pintura abstrata, a irreverência e o rigor científico. Essa mistura, muito viva, me prova, ano após ano, que todos cessaram. Mas não deixaram de existir em mim.

2 comentários:

Anônimo disse...

Márcio,

Linda e tocante sua homenagem. Parabéns!

Grande abraço

Fernanda Rocha Mesquita disse...

E e nessa mistura que se faz um pouco de nos. Quer queiramos quer nao, precisamos de sentir um pouco as nossas raizes, nos ajuda um pouco a sentir de onde viemos. E lembra-las como o Marcio faz neste texto, so e positivo.