sábado, 24 de janeiro de 2009

Um sábado entre gregos e romanos

A atualidade dos antigos
Tenho sincera, profunda e desinteressada antipatia por modismos de leitura. Pertenço ao grupo dos que tentam ler o presente e, ao mesmo tempo, manter um olho nos clássicos.
Esse olho está focado neste momento num pequeno volume da editora Cultrix publicado nos anos 70, "Poesia Grega e Latina", com seleçção, notas e tradução direta das línguas originais por Péricles Eugênio da Silva Ramos.
É livro de cabeceira, que uso inclusive ao ministrar aulas de Latim no ensino superior. Vez por outra percorro suas páginas e encontro lá a expressividade serena, a capacidade de dizer muito com pouco e várias outras qualidades moderníssimas dos gregos e latinos antigos.
Ainda agora, esse meu olho que vê os clássicos deu com versos de Safo (século 7 a. C.), a mais inspirada poeta da Antiguidade, musa das musas, e não deixo de me impressionar com sua visão de mundo feminina. É dela esta pequena jóia:
Contemplo como o igual dos próprios deuses
esse homem que sentado à tua frente
escuta assim de perto quando falas
com tal doçura
e ris cheia de graça. Mal te vejo
o coração se agita no meu peito,
do fundo da garganta já não sai
a minha voz,
a língua como que se parte, corre
um tênue fogo sob a minha pele,
os olhos deixam de enxergar, os meus
ouvidos zumbem,
e banho-me de suor, e tremo toda,
e logo fico verde como as ervas,
e pouco falta para que não morra
ou enlouqueça.

Se o (a) leitor (a) viu alguma semelhança com Florbela Espanca, Clarice Lispector, Ana Cristina César e outras vozes femininas da poesia moderna, não terá sido mera coincidência. Safo é a avó espiritual de todas elas.

***

Entre as vozes masculinas da poesia da Antiguidade, costumam me impressionar os versos de Anacreonte (cerca de 560 a. C.), que faz uma poesia direta e de grande efeito estético que poderia ter sido escrita por escritores modernos. Um exemplo soberbo de poesia em estado puro, extremamente concisa, sem subterfúgios e penduricalhos:

Galgo o rochedo branco
e dele precipito-me
às ondas espumantes,
ébrio de amor.

Para quem ainda não se convenceu da modernidade dos clássicos, é suficiente dizer que Manoel de Barros, o mais importante autor vivo do Brasil (e o maior vendedor de livros de poesia, numa rara unanimidade entre público e crítica), bem poderia ter escritos os versos abaixo, de Simônides de Ceos (século 4 a. C), que os dedicou a Orfeu:


Com a doce música,
sobre sua cabeça
faziam ninho
os pássaros inumeráveis
e da água azul saltavam peixes.


Já os versos abaixo, de Píndaro (século 5 a. C.), além de resumir a mentalidade mística e estética da Grécia Antiga, têm ecos em Fernando Pessoa, o maior artífice da Língua Portuguesa no período contemporâneo. Senão, vejamos:

A sorte dos mortais
cresce num só momento;
e um só momento basta
para a lançar por terra,
quando o cruel destino
a venha sacudir.
Efêmeros! que somos?
que não somos? O homem
é o sonho de uma sombra.
Mas quando os deuses lançam
sobre ele a sua luz,
claro esplendor o envolve
e doce é então a vida.

Em modesta tradução do latim que fiz para os cursos que ministro no ensino superior, aqui estão alguns versos, os primeiros de Petrônio, estrela de primeira grandeza que brilhou em Roma na época de Cristo. Ele evoca a "Vida Campestre", assunto de minha predileção que voltou a estar em voga nestes tempos de crise capitalista e elogio da simplicidade. É nobre e elevado ao evocar a riqueza da vida em contato com a natureza:

Uma casa com sólido teto me abriga.
Uvas cheias de sumo dependuram-se
no tronco eloquente de um olmo.
Os galhos me dão maçâs e cerejas maduras.
As oliveiras, repletas de frutos, curvam-se para o chão.

(...)

Se há um fim da vida marcado para mim,
só quero que ele me encontre aqui,
para que lembrar-me que meu tempo já se esgotou.

E termino com trechos que traduzi do mais famoso poema de amor da Antiguidade, o Pervigilium Veneris (A Vigília de Vênus), que todos os críticos, de todos os tempos e lugares, apontaram unanimemente como uma obra-prima entre as obras-primas, com metáforas que estão na base de boa parte da literatura ocidental. É uma profissão de fé no sentido do amor, atualíssima:

Amanhã amará quem nunca tiver amado,
e quem já tiver amado também amanhã há de amar.

Agora é primavera, e ela canta.
Foi numa primavera assim que surgiu o mundo;
é na primavera que o amor abre os braços para o amor
e que as pequenas aves se unem
e se desprendem os cabelos da floresta,
diante dos carinhos de amante feitos pela chuva.
Essa primavera que une o amor ao amor
vai construir amanhã cabanas verdejantes
usando ramos de mirto, à sombra do bosque.

Amanhã amará quem nunca tiver amado,
e quem já tiver amado também amanhã há de amar.

2 comentários:

Clea Pinheiro disse...

Belíssima coletânea de poemas clássicos! É por isso que vale a pena ‘ganhar’ algumas horas na blogosfera. Obrigada.

Letícia disse...

Márcio,

É sempre uma supresa. Uma atrás da outra. Você é muito bom e conhece poemas antigos que não usavam penduricalhos. Admito que não leio muito o clássico, mas leio o que preciso no momento. Leio por querer distração, conhecimento e suprir minha necessidade. E sempre é bom vir ler seu blog. Um entre os muitos.

Bjs.